Vi a minha falecida mãe pela última vez durante as eleições de 2017. Tinham-se passado três ou quatro anos desde a sua fatídica morte. Acabava de sair da multidão. Tendo por perto apenas a sua própria sombra, estava numa das mesas a preencher o boletim de voto. A primeira reacção foi de um jovem do século XXI. Fiquei assombrado com tão inesperada presença!
Recompus-me. Compreendi. Estavam todos ali pelo voto. Ali, os mortos; acolá, os inexistentes. Mais para frente, numa interminável fila, ao norte de toda a lógica, as réplicas de Dina Cáfila e Calígula Narciso Júnior acompanhados de gentes iguais a si. Não havia hipótese para Oposição. Estavam em várias Assembleias de Voto ao mesmo tempo, projectando os mesmos gestos em prol da esmagadora vitória do Maioritário. Inclusive a minha mãe, drenada por anos pelo sonho da Caixa Social.
Percebi na mãe um rosto fúnebre. Meio flácido. Um rosto próprio de quem acabava de regressar dos mortos. Parecia pior que aquela mãe dos seus últimos dias. A vida da mãe ligada às máquinas num país onde a luz eléctrica era ainda problema. Tive esperança. Voltei-me para a gaveta da memória. Retirei a mãe duma fotografia que se colava como arte abstracta num Cartão Eleitoral. Decididamente, não estava aí para me assombrar. O Sistema, regido por leis sobre-humanas, jogava com vivos e com mortos, para imortalizar o seu domínio.
A mãe depositou o boletim de voto. Sem colar seu olhar sobre mim, partiu antes que os calçados tivessem deixado marcas na areia. Pensei nela ressuscitada cinco anos depois. Ao longo desses anos, mais do que qualquer militante da Oposição, passei a desejar as Eleições Gerais como desértica língua esperando por uma gota de água na eterna idade de uma ânsia. Dar a conhecer Orquídea à sua falecida avó passou a ser o combustível que conduzia meus intermináveis dias.
Transbordado o rio da espera, começaram a nascer em mim alguns campos verdes que não tardaram a acinzentar. Sonhei em vê-la durante as eleições autárquicas. Com rosto pálido, vi meu desejo navegar num mar onde promessas amarradas em mármores gigantes submergiam em águas mortas.
No dia seguinte, fui recuperar meu dinheiro no banco. Havia uma enchente perturbadora. Percebi depois a razão. Cheirava muita morte e bolsas maternas estouradas naquele lugar. Estávamos todos aí. Os mortos, os vivos fedorentos de tanta espera e os que ainda não tinham nascido. Paulo Matumona era só mais um falecido na véspera dos conflitos armados. Amarga e sangrenta curva de um 1992 que não deixou saudade, mas, volta e meia, voltava com a mesma fome e escassez, para nos mostrar que a república era a Inerte Sombra do Tempo. Seu irmão era Adriano Matumona, um general com muitas mortes vivas em mãos. Paulo estava aí comigo, incrivelmente morto, do meu lado esquerdo, na companhia de mais trinta, segundo ele, desconhecidos. Todos com ligações aos seus irmãos.
Eram pessoas mortas. Algumas faziam parte do batalhão que ele dirigia em Mavinga. Todos eles representados nas lúgubres flores do túmulo do soldado desconhecido. Agora ali, naquele instante, impedidos de permanecerem em suas mortes. Alguém precisava dos seus nomes para alimentar seus vícios. Tinha-os vivos na caixa social.
No meu lado direito, um homem esquisito. Tinha rosto de velho, mas, para minha surpresa, falava como um bebé. Inicialmente, pensei que fosse doente mental, mas logo percebi que nele estava um inventado ex-combatente falecido pronto a levantar sua pensão e uma criança por nascer já enquadrada no sistema militar com regalias de general. Trazia o cheiro de bolsa estoirada e sangue fresco. Futuro Matumona Desejo saltou das fagulhas do último sonho de sua mãe, que acabava de enterrar Nado Matumona. Descobriu, alertado pelo seu irmão Nado, morto, mal tinha atravessado o rio da vida, que seu pai o tinha inventado como mais um general fantasma na caixa social. Nado tinha informado a Futuro, que Salvador Matumona, seu futuro pai, usava seus nomes para ganhar dinheiro e viver uma vida de aputaro, enquanto a mãe, amargurada, sofria em seu leito caseiro. Futuro estava ali para mostrar Osvaldo Saltamorte, o gerente envolvido em vários crimes de saque. Mestre em branqueamento de capitais. Mal a polícia chegou, Saltamorte atirou-se do terceiro andar e já sabes o que aconteceu.
Podes muito bem imaginar. Seu nome é Saltamorte. Mais uma vez, provou-se que o homem era imortal. Não morreu para o seu próprio azar e azar dos Matumonas que, após o julgamento, inexplicavelmente remarcado para depois das próximas eleições, responderão em casa ou partirão para Dubai. Serão castigados pela dramática ausência das exposições. Coitados, não poderão mais ser filmados em orgias e assim exibirem a sua juventude. Quem não conhece os Matumonas das grandes festas?!Homens adultos que se relacionavam com desprotegidas adolescentes! Estavam amaldiçoados a fazer isso secretamente, embora o povo faminto não permitisse excessos nessa altura. O ambiente estava fedorento. Os mortos e os que estavam por nascer já tinham cumprido suas missões. Tive de voltar em casa sem nada nas mãos. A Ordem Pública transformara o banco em caos, embora já o fosse.
Lembrei-me que tinha de passar na escola da minha filha. Mora naquela escola um caso bicudo. Um dos alunos, categórico, alegava que havia descoberto que o professor de História de Angola já tinha morrido 1975, depois dos acordos de Alvor. O professor quase nada dizia na sala de aulas, senão da própria vida antes da independência. Estava morto há muitos anos. O que restava ali era apenas sombra, mantida em pé no sistema pelo director da escola e pelo Sistema que se julgava mudado. O director esquecera-se de atribuir nota administrativa a todos eles e eu tinha de ir policiar a minha filha, enquanto os malucos não chegavam: homens de azul, fortemente armados, repudiando crianças com artilharia pesada.
Estávamos em 2022. Meu coração estava em festa. Finalmente, a minha filha ia conhecer sua falecida avó. Só precisaria descobrir a Assembleia de Voto onde ela exerceria o direito de escolher seu líder. Reinava um clima de indecisões. Por conta da crise, o partido da situação asseverava que o contexto não era propício para a realização das eleições gerais. Sugeria o seu adiamento e a redefinição da constituição. Várias manifestações foram organizadas. Algumas não aconteciam. Administradores e manifestantes entendiam-se de milhões. À Comissão Nacional Eleitoral, uma estrutura supostamente independente, exigia-se o devido pronunciamento. Um país que foi gerado pelo caos aprende a valorizar a paz. Ainda que ela doa. A oposição, mascarada de povo, saiu à rua. Construiu barricadas. Dentre eles, estava eu questionando o passado, o presente e o futuro. Depois foi o que se viu…