24Abr
Resumo

O presente artigo surge na necessidade de fazer um estudo contextual da poesia de Agostinho Neto, na sua obra Sagrada Esperança, e aplicar à vivência actual. Faremos uma abordagem dentro da sociologia da literatura para compreendermos os problemas sociais que se vive em Angola. Os estudos sobre a poesia de Neto, na sua maioria, são voltados às épocas de luta para a libertação do país que, na altura, estava sob o domínio colonial. De forma a sairmos deste paradigma histórico que nos é habitual, apresentamos esta temática sobre os problemas actuias do país como a fome, o desemprego, a agressão policial entre outros problemas que maculam a sociedade angolana nos dias de hoje.

Palavras-chave: Sagrada Esperança, sociologia da literatura, poesia netiana

 

Introdução

A sociologia da literatura dedica-se a estudar o sistema literário como produto social. O que implica o estudo da literatura como fenómeno social, do qual participam várias instituições como autores e leitores que produzem, consomem e julgam o material literário dentro das questões sociais.

Os textos literários não são estáticos como privilégios, apenas, de uma determinada época ou espaço, todo texto literário é intemporal e sem fronteiras, por se adaptar às situações de todas as épocas e de todas as sociedades, basta que sejam bem contextualizadas. A poesia de Neto configura-se dentro desta nossa afirmação. Concordando com Madame de Staël Apud Neto (2017, p.16) quando propôs três parâmetros de leitura, dentre elas, dois configuram-se na nossa abordagem sobre a poesia de Agostinho Neto nos dias actuais:

  • A “leitura diacrônica” do sistema literário privilegia a ideia de que a literatura sofre transformações à medida que as sociedades se transformam.
  • Uma “leitura espacial” da literatura que se configura no afastamento de um modelo único e universal e aproximando-se de uma leitura pela qual as literaturas nacionais passam a ser consideradas em sua especificidade.

 

Os problemas actuais face à poesia de Neto

Em sociologia da literatura, faz-se o estudo do elemento social na obra numa relação espaço-obra, sendo a obra considerada a ilustração de determinadas vivências sociais.  Neste sentido, Neto (2017, p.18) afirma que estes estudos devem ser feitos numa perspectiva de interiorização do elemento social como elemento estruturador da obra.

Os poemas de Agostinho Neto, presentes na obra Sagrada Esperança e que servem de objecto do nosso estudo, merecerão de uma análise que vai examinar a presença da representação de certas práticas sociais no país e colocando a relação da obra com determinado momento histórico-social. Nos dias actuais, vários problemas afectam a sociedade angola, dentre eles, podemos destacar a crise económica, política, social entre outros fenómenos como a corrupção e o nepotismo que se instalaram dentro da sociedade angolana. Estes fenómenos têm levantado várias insatisfações por parte da sociedade, principalmente da juventude que luta para o cultivo de uma vida melhor. Como se pode ver nos versos do poema adeus à hora da largada:

Mas a vida

Matou em mim essa mística esperança

 

Eu já não espero

Sou aquele por quem se espera (Neto, p. 11)

 

Nas estrofes acima, apresenta um sujeito poético melancólico por ver a sua esperança longe das realizações. Esse sujeito poético representa toda sociedade cansada pelos problemas sociais que os afecta e por estarem longe de serem resolvidos. Estes problemas podem ser sociais, económicos ou políticos que os deixa sem esperança. Por exemplo, a Agência Lusa, no dia 08 de Julho de 2023, fez sair uma matéria que relata sobre as ondas de manifestações em Angola contra o aumento dos preços dos combustíveis em Angola, uma manifestação que demonstra, claramente, o desgaste da sociedade angolana face à governação vigente, pois dada a crise económica que o país vive, aumentar o preço do combustível pressupõe o aumento do custo de vida da população, bem como o elevado preço da sesta básica que se vive hoje.

Hoje o país vive uma crise no sector da educação, temos muitas crianças fora do sistema de ensino, que, para nós, apontamos três causas para tal situação: a) falta de escolas públicas nas demais zonas do país; b) a dificuldade de acesso às escolas por parte dos pais e encarregados de educação, visto que, em Angola, devido à proliferação da corrupção e do nepotismo, o acesso às escolas públicas têm sido de uma forma obscura, ou seja, à base da corrupção ou nepotismo; c) a falta de emprego por parte dos encarregados de educação.

Segundo o relatório da UNICEF, cerca de 22% das crianças em Angola ainda se encontram fora do sistema de ensino e 48% das crianças matriculadas não concluem o ensino primário. Apenas 11% das crianças dos 3 aos 5 anos tem acesso à educação pré-escolar. As desigualdades no acesso são substanciais entre meios urbano e rural: a taxa líquida de frequência do ensino primário é de 78% para o meio urbano e 59% para o meio rural. No ensino secundário esta taxa baixa para 50% no meio urbano e 14% no rural. Portanto, em alguns versos do poema adeus à hora da largada apresenta um sujeito poético que se manifesta contra o sistema de educação em nossa sociedade. Como podemos ver nos veros a seguir:

Hoje

Somos as crianças nuas das sanzalas do mato

Os garotos sem escola a jogar a bola de trapos (Neto, p. 11)

Os discursos políticos são os principais fomentadores dos problemas sociais por estes não corresponderem ao que se vive na realidade. Uma boa parte das manifestações no país deu-se devido aos discursos políticos e decretos que foram surgindo sem contextualizar as dificuldades que a população enfrenta. Por exemplo, temos o caso da fome que é um problema real no país e que afecta uma boa parte da população angolana. Verificou-se durante um tempo a fome no sul do país, causada pela seca estrema naquela localidade de Angola, mas nos discursos políticos apresentavam uma visão diferente sobre esta situação.

O sujeito poético do poema adeus à hora da largada apresenta a fome e a sede como sendo problemas que afectam a nossa sociedade nos dias actuais. Segundo o jornal Expansão (2021), apresenta um relatório feito pela ONU e a União Europeia onde revela números da fome em Angola associados à seca e situação financeira do país. Segundo os dados deste relatório, entre Outubro de 2019 e Fevereiro de 2020, mais de meio milhão de angolanos viviam em situação de crise alimentar ou pior e, destas, 290 mil pessoas estavam já em emergência alimentar, a somar a 1,9 milhões de crianças menores de 5 anos com prevalência muito alta de deficiência de crescimento e 65% das crianças sofriam de anemia. Portanto, com a desvalorização da moeda que se verifica nos dias actuais face ao dólar e o elevado preço da cesta básica no país, estes dados tendem a crescer ainda mais. No entanto, o sujeito poético mostra-se descontente com esta situação social. Como se pode ver nos versos a seguir:

Com fome

Com sede

Com vergonha de te chamarmos mãe

Apegando-se ao lexema mãe na voz do sujeito poético e dada a situação espacial da nossa abordagem, afirmamos que o lexema remete a uma mãe como uma entidade impessoal, pois a mãe presente na voz do sujeito poético é a pátria no qual se configura a nossa abordagem espacial, pátria esta que, a partir de 11 de Novembro de 1975, tomou a sua independência e passou a chamar-se de Angola.

As abordagens das obras dentro da sociologia da literatura requer, então, um estudo das relações entre o texto e o contexto dentro do seu plano metodológico, fazendo uma análise interna e externa.

Segundo Sapiro (2014, p.18), “o problema da tensão entre análise interna e análise externa, a primeira interessa-se pela estrutura das obras, enquanto a segunda insiste em sua função social. As tentativas de ultrapassar esta clivagem chamaram atenção para as mediações entre a obra e suas condições de produção”. Mas precisamos esclarecer que esta “condição de produção” da obra literária não pode reduzir a análise do texto literário dentro de um único espaço e tempo, ou seja, essa condição de produção deve ser contextualizada de acordo ao conceito de análise externa apresentada pelo autor. Por exemplo, a obra que estamos a analisar foi escrita numa determinada época, mas as temáticas levantadas por ela remetem-nos aos nossos problemas vividos nos dias de hoje.

O poema Quitandeira remete-nos a uma situação que nos preocupa a todos. A situação sobre as zungueiras. O fenómeno da zunga que se instalou na sociedade angolana é o resultado, hipoteticamente, de alguns fenómenos sócias angolanos como: a falta de escolas, políticas de emprego, o elevado custo de vida, entre outros problemas que têm causado a proliferação da venda ambulante no país. Como podemos ver nos versos a seguir:

A quitandeira

que vende fruta

vende-se

 

(…)

 

Compra laranjas doces

compra-me também o amargo

desta tortura

da vida

 

(…)

 

Agora vendo-me eu própria.

– compra laranjas

Minha senhora!

Leva-me para as quitandas da vida

O meu preço é único:

– sangue (Neto, 2013, P.29-31)

O lexema quitandeira no poema acima significa, segundo o dicionário eletrônico da língua Portuguesa, vendedora ambulante de frutas. Na realidade angola, essa expressão é designada pelo lexema zungueira, mulher que faz vendas ambulantes não apenas de frutas, mas de uma mercadoria diversa para o sustento próprio ou da família. Ao termos contacto com o poema acima, perceberemos um sujeito poético desgastado com a sua condição social que, muitas vezes, a coloca às situações de desigualdade social, enfrentando vários obstáculos durante o seu dia laboral.

Na primeira e terceira estrofe do poema, o sujeito poético apresenta as dificuldades que enfrenta no seu dia-a-dia. Nos dias que correm, acompanhamos, por meio dos órgãos de comunicação privados e públicos, as notícias sobre a brutalidade policial quando estes lutavam combater contra as vendas desordenadas no país. Houve muitos relatos de zungueiras que perderam a vida por causa dos seus ofícios, um assunto que choca com a sociedade e que, de certa forma, desvincula a ordem social, causando mais conflito ainda. Se analisarmos os versos “Agora vendo-me eu própria/ O meu preço é único: / – sangue ”, enquadraremos a brutalidade que o sujeito poético enfrenta no seu dia. Embora mantendo um causador não activo, podemos, a partir da nossa análise espacial, trazer as questões da brutalidade policial. O lexema sangue no verso do poema dá-nos a perceber a fraqueza e a morte do sujeito poético, pois o sangue pode significar vida, e este sendo o preço do sujeito poético, dá-nos a perceber que é com a vida que paga o seu oficio da brutalidade policial. Segundo VOA (2019), relata a morte de uma zungueira que tentava recuperar os seus bens que haviam sido confiscados pelos agentes na sua campanha contra a venda desordenada.

A organização da sociedade é feita a partir de um conjunto de processos sociais que visam manter uma boa dinâmica social com o objectivo de criar indivíduos que possam interagir melhor dentro da gramática da vida social. Entendemos por gramática da vida social aquela capaz de regular o comportamento do homem dentro da sua convivência social, pois é isso o que importa na análise sociológica: as relações sociais que os indivíduos vão mantendo entre eles dentro de uma comunidade.  Afirmações do género que nos atrevemos a levantar, leva-nos a questionar as razões da brutalidade policial aos cidadãos, dentre as questões, levanta-se a preparação que os agentes da polícia têm recebido quando são entregues à sociedade para assim servirem. Por exemplo, a brutalidade policial deve-se, será, a falta de nível de escolaridade aceitável, um rendimento salarial baixo ou causar uma desestabilidade social? Este problema que maculam a sociedade é presente na obra Sagrada esperança como podemos ver:

Ansiedade

no homem fardado

alcançando outro homem

que domina e leva os pontapés

depois de ter feito escorrer sangue

enche o peito de satisfação

por ter maltratado um homem (Neto, 2013, 15)

Conclusão

A literatura interessa-se pela vida social, pois, como dissemos acima, toda literatura é o reflexo da sociedade, escrita de acordo com diferentes aspectos. A obra Sagrada esperança configura-se como uma obra canónica na instituição literatura angolana, pois, como podemos ver a partir da análise feita, ela, daquilo que é a análise externa do texto literário, levanta vários problemas sociais dentro do nosso espaço temático (Angola).

Em estudos da sociologia da literatura, percebe-se que toda literatura apresenta um espaço social indeterminado, e é isso que confirmamos na obra que nos serviu de objecto de estudo.

 

Referencias bibliográficas

COSTA, António Firmino da. O que é Sociologia, Quimeira editora, 6ª edição, 2009.

SAPIRO, Gisèle. Sociologia da literatura, Contafios, 2019.

NETO Miguel Leocádio Araújo, A sociologia da literatura: origens e questionamentos, Revista Entrelaces, Agosto de 2007.

NETO, Agostinho, Sagrada Esperança, União dos Escritores Angolanos, Luanda, 2013, 1ª edição.   

Sites consultados

https://www.voaportugues.com/amp/morte-de-zungueira-provoca-dist%C3%BArbios-e condena%C3%A7%C3%B5es/4827592.html

https://www.novojornal.co.ao/sociedade/interior/adolescente-de-13-anos-morreu-com-tiro-na-cabeca-disparado-por-policia-durante-briga-comzungueiras63924.html?fbclid=IwAR1RBXEm63CC5v0FcsLV_Jygj1pdaoaBvBS8lBuDEe_JZOOW3bnW6NWHVE

https://www.unicef.org/angola/educacao

https://www.expansao.co.ao/angola/interior/relatorio-da-onu-e-uniao-europeia-revela-numeros-da-fome-em-angola-associados-a-seca-e-situacao-financeira-do-pais 102122.html

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