Um acontecimento digno de referência ocorreu na primeira semana deste mês de Dezembro, e, para meu espanto, pouca atenção despertou nos órgãos de comunicação social, tirando uns três parágrafos de uma notícia no Jornal de Angola, a anunciá-lo.
Tratou-se do lançamento da publicação literária “Tunda Vala – Agris Magazine”, uma antologia de poemas, contos e textos ensaísticos dos integrantes do Movimento Litteragris.
O acontecimento é digno de referência porque sinaliza o surgimento, no contexto da literatura angolana, nestes anos de mórbida estagnação criativa e em matéria de ideias, de um grupo de jovens conscientes do seu papel e do seu valor enquanto praticantes da arte de escrever. Para os entender, antes de ir à leitura dos seus textos criativos, fomos ao encontro do seu discurso programático, patente substantivamente no editorial e no “Manifesto Litteragris”.
Os jovens autores identificam-se como membros de uma mesma geração e se propõem a “derrubar barreiras” no caminho da inovação. O seu manifesto é apresentado como uma súmula “dos princípios estéticos que norteiam as nossas actividades, enquanto movimento literário” e, é importante sublinhar, “respeitando e aceitando as poéticas vigentes”, sem perder de vista que a literatura é um “jogo eterno no decorrer do qual, aqueles que não souberem jogar, acabam sendo substituídos”.
O Movimento Litteragris define-se, ainda, como “uma associação formada por autores, mais ou menos da mesma época, que compartilhando analogamente o mesmo conceito de humanidade e de arte, estabelecem uma ideo-estética comum”.
Os jovens escritores declaram que “depois de um estudo profundo”, concluíram pela existência, na Literatura Angolana, de três correntes literárias que “impregnaram-se como que raiz”: o romantismo, segundo eles, cultivado por autores como José da Silva Maia Ferreira e Cordeiro da Mata; o neo-realismo, em que incluem Viriato Cruz, Agostinho Neto, António Jacinto e Alexandre Dáskalos; e o simbolismo, segundo eles, iniciado em meados da década de 60 por Ruy Duarte de Carvalho, David Mestre e Jorge Macedo, “adoptado como corrente primeira” pelos poetas do pós-independência (José Luís Mendonça, Eduardo Bonavena, João Maimona, João Tala, Lopito Feijó) …
Feito o diagnóstico da Literatura Angolana, os novos autores “rompem os muros da timidez” e propõem uma poética que eles próprios consideram suis generis. Revelando algum conhecimento das vanguardas artístico-literárias dos séculos XIX e XX e dos seus textos programáticos, com realce para o simbolismo e o surrealismo, e das principais correntes filosóficas de então, como o intuicionismo de Henri Bergson e o positivismo de Auguste Comte, assumem que “contra todas as formas de aprisionamento (poesia de forma fixa, rima e outras categorias nefastas) ” adoptam o verso livre, a colocação do título no fim do texto e o não uso da apóstrofe.
Os que perfilham o Manifesto Litterargis, “no seu macro-instintivo exercício de criação podem contemplar um momento actual, podem reviver por instante um facto antigo, e podem ainda, divinalmente, antecipar o futuro”. Essa postura místico-filosófica leva-os, pretensamente, “a ir mais além do concreto, mais além do palpável, para escrevermos as imperceptíveis armaduras do inexplicável”.
Os jovens entendem que o sujeito poeta não tem mais uma pátria definida. “Num instante, pode ser daqui, noutro, de acolá, e no mesmo instante, tanto pode ser daqui como de acolá”. E, não tendo uma ideologia política, “tem a sua própria ideologia e faz a sua própria política”. E, “não tendo uma, é sua própria religião” e liberta-se de tudo em prol da poesia.
Levantam-se contra a morte e “têm os olhos como que holofotes centrados na posteridade”, numa busca incessante da imortalidade, que será possível alcançar “através de infinitas transgressões a nível dos escritos”. Os autores do manifesto, perfeitamente claros na sua visão, proclamam aos céus e aos homens: “mais do que simples jovens, somos filósofos e poetas”.
Programa “versus” criação
Reza um ditado que no inferno abundam as pessoas cheias de boas intenções. Logo, mais do que pelo seu discurso programático, um escritor deve ser avaliado pela sua obra criativa. No caso dos autores do Movimento Litteragris, resta-nos então lançar um olhar sobre os seus poemas, contos e crónicas. Na antologia “Tunda Vala” estão reunidos 58 poemas, seis contos e cinco ensaios de um total de 26 autores nascidos em várias províncias do país entre 1982 e 1995. O grupo de autores inclui homens e mulheres, estudantes universitários, do ensino médio e secundário, professores, jornalistas, enfermeiros, pasteleiros, educadores sociais…
Os poemas, sendo diversos na temática, encarnam a poética do Movimento e surgem, em muitos casos, como apêndices ou prolongamentos ilustrativos e programáticos.
Mariyeth Baptista Van-Dúnem, “Silêncios”: “A vida é uma escalada de transgressões / Ninguém passará a posteridade com versos mortais”.
Ernesto Daniel, “Agrispátria”: “Cada verso é uma meta / com que se constrói / esta pátria de cultivar poemas”.
Luther Kiculo: “Um olhar estrábico / sobre o passado que se pensou eterno. // Passos resolutos em busca do reino perdido, / sagrar-se imortal ante a hipocrisia do aplauso. // Perfurar o tempo e alimentar tunda vala / sem esperar quedas plúvio ou métricas / que nem são fitas de gerações”.
Desde já, o que se pode dizer é que, no contexto geral de mediocridade reinante no panorama das novas gerações (as excepções existem e estão salvas!), com o Movimento Litteragris estamos diante de um naipe de autores cuja ainda brevíssima obra revela uma genuína inquietude existencial e uma ambição legítima de romper barreiras e se darem a conhecer, em toda a sua idiossincrasia, como sujeitos do seu tempo, da sua época. Eles querem se fazer ouvir, do fundo da sua alma, e parecem muito conscientes dos caminhos que devem trilhar. E o facto de se constituírem também em grupo de estudos de temáticas literárias e culturais indicia que estão apostados em ir muito mais além da breve fama e a viajar pelos desertos da solidão criativa, desertos esses que são lugares onde o homem (ou a mulher) se confronta com o abismo de si mesmo e do mundo.
A propósito destes jovens, apraz-me citar o filósofo e ensaísta português Eduardo Lourenço: “Esta geração foi testemunha de uma debandada de valores torrenciais, mas chegou tarde para ser desfeita entre os escombros. (…). Os escombros parecem-lhes naturais porque nasceram entre eles. Têm de viver entre estátuas partidas sem se poder servir delas nem as amar. Para dar um sentido à vida, descobriram entre o mundo calcinado a estátua miraculosamente intacta da Poesia. De todos os valores submersos mas de novo postos a flutuar pelos mesmos que os afundaram, só a Poesia lhes pareceu digna do seu culto. (…). Nela se salvaram como poetas acreditando por legítima convicção e natural interesse que através dela se salva o melhor dos homens”.
(Eduardo Lourenço, Tempo e Poesia, Relógio D’Água, Lisboa, 1987, págs. 65/66).