A declamação desdobra o sentimento, resgata pedaços de memórias e acalenta emoções. Seus acordes permeiam a sensação que aflora, bailam sobre as nesgas do silêncio e depois de dialogarem entre si, repousam na aba do sentimento.
Não importa o timbre da voz, nem o alcance da palavra. A declamação ultrapassa o entendimento; ela é o grito da poesia. Uma boa voz não é impreterivelmente o fundamental, ainda que ajude e seja um item de importância. Para o declamador, o mais importante é transmitir a afecção do texto ao funcionar em uníssono com o mesmo.
Deve despertar o sentimento que brota quando desistimos de sonhar, mas o sonho não vai embora…
Uma boa dicção valoriza o texto e não confunde o ouvinte. Por isso, o declamador deve articular bem as palavras, sem comer letras ou sílabas inteiras, tão pouco deixar cair o tom de voz no final das frases, atrapalhando o ritmo da leitura. Sabe-se que, ao estruturarmos frases que vêm directamente do nosso pensamento, o cérebro é muito mais veloz do que o nosso aparelho fono-articulatório ao expressá-las. Assim, antes do acto de declamar, o declamador deve construir toda a ideia do texto, para que a sua verbalização seja equilibrada. Assistimos a muitos recitadores que constroem suas frases no momento da declamação, que acaba por ficar carregada de entrecortes e cambaleios, denotando insegurança e falta de preparação, bem como uma relação de distância com o texto.
A declamação mutilada morre à míngua, antes mesmo que o poema ganhe forma. Por conseguinte, a declamação suprema não se constrói de pedaços de corpo, mas de sonhos inteiros, vestidos de uma miscelânea de sentimentos.
A poesia, enquanto arte verbal e auditiva, aproxima-nos de nós, ou seja, a transferência do poema para o universo físico aproxima a poesia ao nosso corpo. Assim, a realidade palpável do poema é uma parte fundamental no seu trato, e a experiência auditiva estética é sempre carregada de significado.
Essa dimensão física do poema, fora do papel, é indispensável para a compreensão do fenómeno literário, pois, a partir daí, é possível explicar diversos e outros fenómenos. É importante mostrar que o poema, antes de ser um texto no papel, tem uma realidade física intrínseca a si. A possibilidade de diversas interpretações na declamação reflecte directamente a orientação dos artistas.
Na maior parte das vezes, não se compreende o poema na primeira leitura. Assim, o declamador deve estar dotado de capacidades para analisar e interpretar o conteúdo do texto de acordo com o contexto, a fim de melhor construir a sua musicalidade. Além disso, normalmente, ouvir um poema bem declamado ajuda a melhor perceber seus efeitos e o próprio conteúdo. A declamação que prospera é aquela que, para além do requinte, acarreta em si uma ligação com a alma que a canta e, mesmo longe, exilada e esquecida, guarda a verdade com o esplendor do diamante.
O declamador que floresce é seiva viva que não se dobra ao inverno e ao vendaval. É água pura que garante a foz do rio.
Declamar é arte que dispensa adjectivos. É pérola que tem brilho cativo. Mas requer cuidado, como a flor do ninho que, desamparada, clama por carinho. Ela é o mesmo fogo que ilumina a noite escura quando os olhos buscam a chama da aventura; é a insegurança toda da paixão que flameja e arde à entrada do coração, quando a saudade invoca a luz do bem-querer, e o que se espera é a emoção do entardecer.
Por esse palco, a que chamamos arte de declamar, desfilam diversos declamadores, GRANDES e pequenos. Uns cantam o que nos afecta, desde o êxtase a dor, outros nem se ouvem porque, enquanto declamadores, não têm alma. Visto que a declamação é o brilho que incita e acalma, tem de ser inteiro e vir da alma. Aos sem alma: desfaçam-se dos borrões que vos limitam e sugam a voz dos versos, libertem-se e dissolvam o elo para alcançar a melodia. Pois, o declamador não tem escolha. Tem de mergulhar na poesia e na beleza de seus traços, e só assim, vencerá o desafio de mirar o horizonte e perceber que é preciso proteger os olhos para namorar o sol.
Numa palavra, declamar é tocar versos com a ternura dos lábios. E o declamador, mais que tudo, é a pedra que se equilibra no fio de seda. Se cair, é como que evaporasse o elo entre ele e o poema por não mais ter onde pousar. Se se mantiver firme alcança a luz de sonhos e esperanças num canto azul levemente dourado, e a canção que resulta desse instante faz o sol perder a hora de dormir.