Da autoria de Agostinho Neto, o conto intitulado “Náusea”, tem vindo a ser bastante referenciado pela forte e simbólica presença do mar como palco de alienação do continente africano aquando do processo de colonização e tráfico de escravos. Porém, a presente análise visa apresentar um breve comentário sobre a construção do diálogo intergeracional estabelecido entre as personagens da narrativa “Velho João e o seu sobrinho” como um meio de transmissão da experiência adulta enquanto forma de educação aos mais novos, à luz da teoria das implicaturas conversacionais pragmáticas.
Sobre o Conto
Da antologia de contos angolanos “Pássaro de Asas Abertas”, editada pela união dos escritores angolanos, a narrativa escrita na década de 60 por Agostinho Neto, retrata a ideia do mar como símbolo de morte e palco de alienação do continente africano em época colonial. Uma visão adversa ao que era comum na altura, isso nas epopéias européias, em que o mar se configura como símbolo de exaltação e expansão, fruto das suas expedições marítimas resultantes da era imperialista.
Apresenta-nos ainda, uma configuração social do período colonial. Assimetrias sociais que chegam a conferir atualidade ao conto, se considerarmos a configuração das nossas cidades urbanas hoje, perto de 5 décadas de independência nacional, ainda é possível vermos o reflexo do espaço apresentado pelo narrador em época colonial, elementos como: transportadores de carga-vulgo trabalhador, cubatas, casas de chapa habitadas por pessoas, não só em zonas periféricas, sobretudo em zonas consideradas “nobres”, estão bastante presentes em diversos pontos do nosso país, o que se constitui como uma crítica social bastante atualizada no contexto social angolano, pois em 5 décadas de independência nacional angola continua a enfrentar os mesmos problemas da era colonial.
Como podemos testificar no excerto a seguir: “Tinham-se passado anos. Preferia carregar sacos às costas por conta de brancos da baixa a morar na cubata de latas de petróleo de Samba kimôngua”. Náusea, (pág.8).
Há também a questão das transformações ou reestruturações urbanas e sociais que privilegiam à algumas áreas do país por influência da sua localização geográfica e do que estas áreas tinham a oferecer para o bom funcionamento e legitimação do sistema colonial no país, fatores como (costas marítimas, relevo, condições climáticas, flexibilidade ou resistência à cultura imposta pelo colono) estratificarem a sociedade angolana, pois nota-se que nessas regiões existe uma assimétrica tendência de desenvolvimento social e infraestrutural que não pode ser visto em outras regiões que não comtemplem tais fatores. Facto que perdura até aos dias presentes, o custo e estilo de vida nessas áreas constituem-se como privilégios para certas camadas da sociedade, demonstrando que desde os tempos coloniais o mar se configura como ponto de elite:
“Da sua cubata de samba kimôngua, velho João saiu com a família, de manhãzinha muito cedo, e desceu a calçada, atravessou a cidade, toda a cidade mesmo, até aos confins da baixa, passou pela ponte e pisou a ilha, mas não já a mesma ilha dos tempos antigos. Pisou uma ilha sem areia, com casas bonitas onde não moram pescadores”. Náusea, (pág.8).
Porém, como já referenciamos, o nosso maior interesse recai sobre a construção do diálogo intergeracional estabelecido entre as personagens (Velho João e o seu sobrinho) e é por tanto sobre esta questão que nos vamos incidir.
Sobre A Literatura Netiana
Como é característico das sociedades coloniais, (a desigualdade social, a violação dos direitos fundamentais dos nativos, a miséria em meio a fartura dos colonizadores), tal cenário constituiu-se como motivação para o desenvolvimento da arte literária de Agostinho Neto. A literatura netiana é caracterizada pelo inconformismo, resistência, esperança e anseio por libertação; pelas indagações, confronto, revolta e denúncia mediante à realidade social da época, viu-se desafiado a usar a literatura como forma de protesto, para falar da necessidade de lutar pela identidade angolana, pela independência, pelo sonho de uma Angola nova e melhor para todos os angolanos, sem etiquetas ou rótulos atribuídos pelo colono.
O Diálogo e Teoria das Implicaturas Conversacionais
Antes de apresentarmos as implicações que se colocam na construção do diálogo entre as personagens da narrativa “Velho João e o seu sobrinho”, importa apresentar os conceitos dos principais termos que nortearão a nossa abordagem.
A palavra diálogo, de acordo com o dicionário eletrônico da Porto Editora, pode ser entendida como uma conversa entre duas ou mais pessoas, troca de idéias, opiniões e conceitos, com vista à solução de problemas, ao entendimento ou à harmonia na comunicação entre as pessoas envolvidas. Porém, recorrendo à origem etimológica da palavra diálogo, que do grego dialogos = “logos” significando “a palavra” ou “o significado da palavra” mais “dia”, significando “através de” – não significando dois ou duplo. Entretanto, Bohm (1986) afirma que diálogo pode se dar com qualquer número de pessoas, não apenas entre duas. Até mesmo uma pessoa sozinha, pode ter um sentido de diálogo consigo mesma, se o espírito do diálogo estiver presente. Entretanto, a nós interessa-nos reflectir em torno do primeiro conceito.
De acordo com Levinson (2007), a teoria das implicaturas foi desenvolvida por Grice em 1976, e apesar de não possuir um histórico extenso é considerada um dos conceitos mais importantes no âmbito dos estudos pragmáticos. A implicatura dá uma explicação de como é possível dizer alguma coisa e querer dizer além do que as palavras selecionadas são capazes de expressar, ou seja, as implicaturas derivando que é dito, de suposições, de deduções, e da pressuposição de que pelo menos o princípio cooperativo entre os interactantes está sendo mantido. Porém, torna-se também cabível a exclusão de possíveis conversas, como conversas inadequadas.
Estas implicaturas conversacionais não são regras rígidas ou imutáveis, mas convenções cooperativas que surgem no âmbito do diálogo e que se significam de acordo aos contextos conversacionais em que se realizam. Deste modo, de acordo com Santos (2018), as implicaturas podem ser distinguidas de outros processos dedutivos (como pressupostos) por cinco propriedades características:
- Grice ressalta que todas as implicaturas conversacionais são canceláveis;
- As implicaturas são não destacáveis, o que significa que a implicatura se liga ao significado do enunciado, não a qualquer item específico do léxico ou à forma da sentença escolhida para expressar o significado;
- As implicaturas são calculáveis. Isto é, a relação entre o enunciado que produz a implicatura e seu equivalente de observação máxima pode ser rigorosa e especificamente expressa como no exemplo;
- As implicaturas são não convencionais. Isso significa que uma implicatura não é parte do significado do “dicionário” de qualquer uma das palavras envolvidas, mas sim da “enciclopédia”;
- As implicaturas não são totalmente determináveis, isto é, não há ligação direta entre a forma de uma implicatura e seu significado pretendido.
Santos (2018).
No diálogo da narrativa em análise, levantam-se elementos como o silêncio, a imaginação, o monólogo íntimo em detrimento da fala no meio da conversa. Do ponto de vista da compreensão da linguagem, a compreensão de tais elementos se constitui indispensáveis para a efetivação do processo comunicativo. Deste modo, recorremos as implicaturas conversacionais pragmáticas para explicar os mecanismos linguísticos utilizados na construção do diálogo em questão.
“De repente o tio olhou para longe e disse ao sobrinho, estendendo o braço:
_ O mar. Mu´alunga!
O sobrinho olhou para ele esperando mais alguma coisa, sem compreender o significado que o tio queria dar àquela palavra. Porém, ante o silêncio do tio, desviou a atenção”. Náusea, (pág.8).
Do excerto acima, percebe-se a implícita idéia de uma conversa excluída ou tida como inadequada, entre o tio e o sobrinho, duas gerações que se fecham cada uma na sua completa razão. Por um lado, o tio, por introduzir uma palavra alheia ao código lingüístico “previamente estabelecido” na conversa (Português/Kimbundu), tendo o conhecimento prévio de que o sobrinho não entendia a língua kimbundu; por outro, o sobrinho por não ter atribuído relevância suficiente ao comentário do tio, a ponto de desviar a atenção sem questionar o significado da palavra em questão, significando, portanto, que não tinham interesse na conversa. Dando margens a deduções que não permitiram a compreensão da intenção comunicativa e transmissão da experiência adulta como forma de educação aos mais novos por via da oralidade.
“Velho João já olhava de novo a areia e monologava intimamente… lembrou-se de que…Esquecera-se da sua alegria na hora do almoço para pensar naquelas coisas tristes… Sentiu náuseas, não podia mais. Vomitou todo o almoço”. Náusea, (pág.8).
Reitera-se aqui a ideia de um diálogo mal conseguido, isso do ponto de vista da compreensão da intenção comunicativa entre as personagens. Percebe-se no trecho acima, a preferência do velho João ao monólogo íntimo em detrimento do sobrinho que se encontrava bem ao pé de si, que por pressuposição era muito novo para entender tais questões das suas vivências e da história do país. Logo, mais uma vez, fecha-se as suas lembranças e sua completa razão.
Consequentemente, a situação repete-se, o sobrinho toma o monólogo para si, fazendo um juízo de valores equivocado sobre o tio, implicando que “bêbado” e na condição de velho, o tio João dava apenas o ar das suas infundadas manias, típicas da terceira idade, sem qualquer fundamento plausível para aquele comportamento diante do mar que ele era apenas o mar, mas para o tio é uma carga de más lembranças:
“O sobrinho amparou-o e enquanto voltavam para casa, em silêncio, ia pensando na mania que têm os velhos, de beber demais”. Náusea, (pág.9).
Em suma, como podemos constatar, o conto náusea possui elementos que permitem analisá-lo a partir de diferentes pontos de vista. Ora, privilegiamos em nossa análise os elementos respeitantes às implicaturas que se impuseram na construção do diálogo entre as personagens. Contudo, fica patente a idéia de que a interpretação da intenção comunicativa da linguagem no acto de fala, vai muito além das palavras ditas pelos interlocutores, embora o contexto histórico do texto nos permita outras possibilidades de interpretação dessas implicaturas. O princípio de cooperação pode ser fundamental para aceitar ou excluir conversas, logo, a compreensão de elementos como gestos, silêncios, suposições, imaginações e deduções no contexto da conversa, podem ser preponderantes para permitir a compreensão mútua entre os interactantes envolvidas na mesma.
Referências Bibliográficas
BOHM, David (1989). O Dialogo. Edição dos registros de um encontro que aconteceu numa Segunda-feira 06 de novembro de 1989 na cidade de Ojai próxima a Ventura ao Norte de Los Angeles. A transcrição inglesa editada, foi corrigida e aprovada pelo Dr. Bohm.
GOMES, Jacielle (2022), Análise De Implicaturas Conversacionais Em Entrevista Do Programa Roda Viva. Arapiraca: Universidade Federal De Alagoas Campus.
NETO, António (1960). Náusea. Dos REIS, Margarida; QUINO, António. (2016). Pássaro de Asas Abertas – Antologia de Contos Angolanos. Pág. (7-9), Lisboa: A.23 Edições.
SANTOS, Saulo (2018). Máximas Griceanas E Inferências Pragmáticas Fund. De Pragmática Apoio Pedagógico.
TOLLE, Paulo (2019). APA: Regras gerais de estilo e formatação de trabalhos acadêmicos. 2.ed., São Paulo: Biblioteca FECAP.