29Abr

Um encontro perigoso entre a vida e morte. São 4:00 da manhã e os donos da energia acabaram de cortar na Avenida 21 de Janeiro, Rocha Pinto, ruas excitadas, mas as mangueiras quase sempre secas. Na rua, o bairro, as casas como se estivessem uma por cima de outra. Uma arquitetura para os que só precisam de abrigo. Talvez é aqui onde todas as coisas passam, mas não as pessoas em segurança. Aqui falta tudo. Até a vida nos escapa por entre os dedos como se fosse vultos.

Outros donos vigiam as ruas, os becos, quem sai cedo sabe que sua vida é um semáforo que só marca o vermelho, alias, não importa o tempo, a vida e a morte andas juntos, eis o semáforo marcando verde e vermelho, sempre. A vida é essa realidade contraditória. Os donos da rua são crianças e jovens alguns com sonhos, outros nem por isso, então realizam cedo os seus sonhos cobrando dos outros os seus pertencentes.

Estas crónicas e vivências do sombrio país e triste nunca impossibilitaram Igraça de ir contra a madrugada obter os produtos que irão alimentar os seus filhos e seu negócio. A minha Igraça sobre salta da sua cama, o brilho de um céu limpo fá-la sentir que são 6:00 da manhã. Mesmo tímido, a clara presença que traz a alvorada, envolve-se com olhos numa tímida disputa de amor e ódio, ao desadormecer as pálpebras ou se rendem ou lutam contra o sono.

Ela acha sempre que está atrasada para ir abastecer continuamente as manhãs no mercado do Triangulo com a sua muamba. Eu durmo na sala, oiço tudo, finjo demência porque minha conversa é com retracto antes de enfrentar o mundo. Naquele dia tive saudades dessa rotina, o corpo fora da ordem da casa é denúncia da ausência.

Regressando à casa, a rua em que sigo caminhando outras vidas acontecem. O tempo estava difícil para todos, até para os donos das ruas, mais uma noite de ronda sem sucesso que não conseguem tirar pão. Então eu apareci como o último milagre antes que os primeiros raios de sol saírem da incubadora e iluminassem o dia do bairro. O líder deles Cicatriz na Cara é respeitado e mais conhecido pela sua violência animista. Foi ele que tirou pão e estripou um vendedor ambulante de telefones da Moagem, a poucos metros do Colégio dos azulados localizados perto do mesmo local.

Eu vinha a chegar de longe ao longo da rua 3, magro, tímido e com poucos sorrisos. Ele expediu sua equipe em duas partes, uma na Igreja do Senhor na Terra e umoutra na entrada da Pedonal da Moagem. Atento, já tinha entendido os movimentos no círculo deles e que a armadilha estava se fechando ao redor dele. Eu não conseguia imaginar-me estar morto cedo e perder os meus míseros 1000 esta manhã, para não ser intimidado improvisei uma estratégia de saída em campo. Avistei de longe um carro que fazia um cortejo fúnebre. Juntei-me a uma mãe que chorava amargamente o seu filho, passei a chorar também lágrimas frias enquanto acompanhava a interpretação de uma canção fúnebre directamente do folclore Kimumbu para fingir que recebi a notícia do falecimento de um ente querido.

“Eu que já não tenho irmão como fico”! Entonava com a minha voz melodiosa. Junto com a voz, a banda Palata, Kimumbu de triste memória, minha voz soava como uma criança de coro. O primeiro flanco do grupo do lado da igreja que se aproximou daquela senhora visivelmente arrastada pela tristeza e melancolia. Então disse um deles: “deixem a mamoite passar. Está sem beçaca, está gato.” O outro grupo ao me ver varrido pelas más notícias, também, disse: “ na Cara, aqui também não tem pão para lhe tirar esse wi é só um rabão”.

Eu ouvindo eles natural mente, acelerei o meu ritmo musical e choro, desta vez acompanhado de gestos mais espectaculares, tirei a mochila e levantei os braços e atirei-me ao chão. Cicatriz na Cara e o seu gangue descobriram que não conseguiriam pão de mim, experimentado e testado pela melancolia e ainda chorando lágrimas frias. “Passam, passam rápido para não estragarem os outros pães que virão”, dizia ele à medida que eu passava perto dele e segurando fortemente a minha mochila no peito. Eu só queria chegar a casa.

Igraça também tem um mundo a enfrentar, o mundo é o nosso bairro. A caminho da rua esse mundo acontece, alguns bêbados ainda estavam a espumar o seu álcool nos bares do Apetece, as músicas surgem de todos os cantos da rua e de formas incertas, dum lado um bom Kuduro, doutro a Kizomba, uma mistura que faz um novo estilo sem identificação, só castigo para os ouvidos. Ela ri com todos, faz questão de acenar as pessoas como gesto de saudação. Não é a praça o lugar onde os mortos adoram marcar encontros, as pessoas de sei lá onde lá se cruzam, passam-se por meros olhares? Um mercado improvisado por de baixo da ponte, é lá onde comem muita gente, é lá onde também morrem mulheres que tentam salvar suas casas da epidemia da fome.

Os do Colégio Azul chegam e aí começa um verdadeiro romance, ora dramático, ora histórico ou nada. Naquele dia, não era o dia de sorte, quando o Colégio Azul chegou o pandemónio começou, o correr desorganizado, elas não sabiam se salvam as vidas ou os estômagos dos filhos. Uma delas viu-se a perder tudo e como não podia perder mais nada, encheu-se de coragem para não perder o estômago dos filhos. Clamou que a deixassem ir, era uma confusão, todas elas ao verem aquele gesto decidiram enfrentar os do Colégio Azul. Um deles para tentar acalmar os ânimos usa o pretexto da sua falsa autoridade e fere mortalmente uma mulher, uma mãe.

Todos, absolutamente todos, o bairro se encheu de fúria, os jovens, os donos das ruas, as vendedeiras formaram uma linha de frente contra os do Colégio Azul. A atmosfera cinzenta estendeu-se até o sol morrer com caos, tiros, medo, insegurança. Uma atmosfera não mais cinzenta que os sentimentos da família, das vendedeiras e dos homens.

Assim construiu-se mais um capítulo desta longa tragedia naquele bairro.

E no final do dia, Igraça só quer voltar para casa descansar do estresse da praça e talvez abraçar os filhos, como todas as mulheres que levam suas casas enfermas com a epidemia da fome para trazer remédios para os estômagos. Amanhã será mais um dia de poesia concreta que esta mulher enfrenta para levar pão a casa. Ela cansada, na sua humilde varanda, bebendo uma cerveja, olhos profundos e com uma tristeza que brilha por ver os seus filhos ali com ela, sorri. Os seus gémeos cassulas no colo fazem o mundo parecer melhor e esquecer as baladas poéticas do Rocha Pinto.

– Mãe, o que significa ser mãe?

– Significa estar com vocês aqui, agora!

Atalhos:

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