Há nomes que são fogos pendurados na pata da gente. Queimam-nos a cada passo que marcamos. São pragas, carmas, estigmas no corpo, como os seios siameses dum texto que li.
Os dedos do relógio infringem de dor a empanturrada barriga de Capombo: o sufoco da idade quarenta a torturar-lhe de cansaço o corpo, os gemidos de parto da gravidez de quinze meses e o bebé preso na jaula do ventre a negar-lhe o mundo, a enlouquecem cada vez mais. Toda calamidade do universo nos lábios de Capombo, rugindo feroz como uma leoa ferida, e soltando estridentes gritos na boca da rua como uma criança faminta. Um rio dágua quente invade de preocupações o rosto do bairro. Uma corda misteriosa prende a lua. O tempo é uma bicicleta sem rodas, estagnada no meio da noite. Tudo é medo, susto, assombros, fugidelas, como um bagre astuto que escapa do anzol sufocante da morte. Nem a kimbandeira Guida, de marca ancestral, bisneta da avó Umba, conseguia trazer ao mundo o misterioso bebé escondido no palácio umbilical da mãe. Parece que conhecia de perto, pelos sentidos, os martelos do mundo, a caírem a dois metros de cólera no esferovite corpo da humanidade.
Dona Capombo estendida no chão da velha varanda, com todas as orações gastas e súplicas comidas pelas longas horas de espera, pedia a qualquer anjo, a qualquer deus, que milagrasse ao mundo – a vinda de seu filho. Don Carvalho, por sua vez, prometia a todos os santos e estátuas que, se sua esposa desse à luz, daria um quinteto de sua riqueza aos mais favorecidos e, como pior dos sacrifícios, cortaria um pé de suas pernas e daria de comer aos famintos porcos da vizinha Albertina.
De repente, o bebé chutou os dedos das mãos para fora, e a pequena vizinhança que acompanhava de ouvidos o desfile dos acontecimentos, qual cachorros vadios, puseram-se a correr por destinos incertos. Alguns vizinhos até abandonaram o bairro para se escapar da ineditagem.
– Isso é praga! Qual é o crime que ela criminou? – Indagou a velha Ingo.
Nunca nos olhos de Isunji ou da humanidade sob jugo de uma colónia, um bebé juntaria todas as ferramentas de guerra e mudasse o curso da história, proclamando a independência da nascença. É uma ruptura, um novo rótulo de nascença, um bebé a nascer com os dedos das mãos?!
Velha Ingo, parteira de várias estações, com 53 sóis a morrem como praga nos seus chineses olhos, pediu que as curiosas jovens com idades de chamas acesas no labirinto das pernas, abandonassem o local. Mal as suas pegadas foram cobertas pela areia arrastada pelo vento, os dedos das mãos, no formato de uma asa, saíam para fora. Aliás, afinal não eram dedos das mãos, nem formatos de uma asa tinham. Como as luzes incendiavam de escuridão, quase que nada se via. Viu-se depois, quando no enraivecido expulso de Capombo, uma coisa meio estranha foi parar às mãos da velha Ingo: Cabeça humana, tronco meio peixe, meio humano. Na verdade, era um bebé peixe, um peixe bebé ou bepeixe a pedir água apontando as barbatanas das mãos para o rosto do pai. Com espanto e admiração, Don Carvalho desmaiou e levantou. Capombo, com o corpo no embalo da fadiga gritou-lhe:
– Ché Carvalho, caralho! Acorda, porras! Porquê que você desmaiou? Fui eu que nasci, ouviste?
O bebé pediu água quando Carvalho tomou logo consciência, gritou:
– Ham!
– O bebé pediu água?
– Qual bebé? O nosso?! Ai meu deus! Desmaiou e acordou com os olhos cheios de sentimentos distorcidos.
Era mesmo um bepeixe falante, a chorar e a questionar se os filhos eram obras da natureza ou de Deus afinal.
Os vizinhos, com os olhos apontados na curiosidade, num piscar de lábios, já tinham espalhado a notícia pela rua afora. Velha Ingo, com as experiências no dorso do tempo, manteve a situação calma e controlada, mas com a agulha do medo profundamente a picar-lhe o coração. Devolveu o bebé à mãe e, com desculpas para se desfazer da ensanguentada roupa, desapareceu a vapor, esquecendo-se da crise da idade e, depois, a noite correu como uma lebre na meta do amanhecer.
Tão logo os olhos do sol espreitavam no morro do amanhecer, um mar salgado de tumultos invadia a boca do bairro num mistério que o comandava.
Os conselheiros de Isunji decidiram estender sobre a esteira da mesa o problema da família Carvalho. Afinal, Isunji não era qualquer local. Era uma cidade, embora no interior do país, tivesse a cabeça erguida na Europa. São 24 casas com suas fazendas, estábulos, armazéns e celeiros deixados pelos portugueses em meados dos anos 74. Tinha mesmo classe, uma classe europeizada que até quase não se falava a nativa língua. Todos foram arrastados pelas correntes linguísticas do português, a não ser a palavra isunji (azar), em memória da morte do pastor Kalupeteka. Um devoto cristão e precursor de Isunji, que foi engolido por um camaleão. Narra-se que o pastor Kalupeteka ofendera um camaleão que imitara a cor preta da sua Bíblia e o camaleão enfurecido com o palavrão, engoliu-o e depois abriu as asas e voou. Dizem que nunca mais apareceu. Era um camaleão voador da terra dos meninos gigantes. Um reino, algures entre marte e alguma coisa, habitado por camaleões de todas as espécies, desde camaleões meninos a camaleões gigantes.
Com a permissão da família Carvalho, tinham de livrar a cidade de uma praga vindoura. Entretanto, o conselho decidiu pôr fim à estranha e sofrível vida do bebé. Qual espanto a invadir o quarto para o premeditado acto. O bebé, tal um remoinho evaporou da cama.
Um pânico dominou a área. O bairro ajoelhou-se em perdão rezando dois mil Pai Nosso e quinhentas Ave-Maria. Vizinha Albertinha, com a dispensa roída pela miséria, foi cobrar do Don Carvalho a sua perna para alimentar os porcos. Afinal, a promessa é uma corda de sisal pendurada no pescoço. Para cumprir a cadeia da promessa e não perder a perna, Don Carvalho doou terras à vizinha Albertina para que cultivasse.
O relógio é uma carruagem. Puxou o tempo para vinte e três anos mais tarde, quando Isunji é atacada pelos camaleões da terra dos meninos gigantes pela força da seca e da fome. Famintos e sedentos disparavam acesas línguas e destruíam com o peso dos seus corpos as casas, as coisas, como quem quisesse deixar em cinzas uma aldeia no tempo da guerra. Carregavam no estômago uma fome antiga, e o povo com o fôlego da morte na ponta do coração clamava por socorro, metendo-se em fuga para escapar da morte.
Como um Cristo a ressuscitar dos mortos com uma manta branca a cobrir-lhe o corpo, vinha confusa, entre o céu e a terra, uma bela jovem com cabelos lisos a banhar-lhe as costas, e com uma metralhadora de águas entre as mãos. Era a bepeixe, agora moçapeixe a entornar os rios dágua fria e a congelar os camaleões voadores. Com o golpe de um rio, afugentou com o seu tempestuoso sopro os gigantes camaleões, e com as suas poderosas mãos, reuniu o vento e lançou-o para a vulcânica montanha na margem esquerda de Isunji. Capombo reconheceu pelas mãos de barbatanas, já adultas, e pelos olhos de nuvens, que era sua filha, a quem reservara o nome de Dália antes da nascença.
A cidade ajoelhou-se diante de Dália, pedindo bué de perdão à rainha do rio Kusonhi: rio mais fundo que o rio Kwanza e mais largo que a Praia-dos-Generais. Dália, de pé, entre as águas que trazia consigo, beijou os pais e, num vulto, desapareceu, deixando nas memórias a ideia de que todos os filhos são importantes.