CENA III
Num ímpeto, a Galinha volta a entrar, cheia de sono. Quer dizer, fingida de
sono.
GALINHA – (Bocejando) Mas que tipo de sono é esse que nunca passa, meu Deus!
Xé! Até parece que fui ferrada pela mosca Tzé Tzé!
Com uma almofada na mão, dirige-se ao único compartimento da casa, puxa a toalha da mesa, estende-a no chão e dorme.
TUNGANÉ – (Estupefato, confidencia com a mulher) Ó Lu, mas o que é que essa feiticeira está a fazer?
LU – Era isso que estava a tentar dizer-te. Aluguei-lhe um quarto… Quer dizer, uma parcela da casa.
TUNGANÉ – (Chateado, dispara um murro na mesa) No cadingue! Eu já disse que não quero bichos nem bichas em minha casa. Essa merda não é nenhum curral dos porcos e muito menos capoeira para as galinhas. (Agarra a Galinha pela asa, ou seja,
pelo braço e a enxota) Vamos minha senhora… Xó… Chispa daqui!
Lu puxa à parte o marido…
LU – (Confidencia) É uma galinha, amor, não vês?! Nós só temos peixe. Podemos fazer permuta.
TUNGANÉ – Animal vivo assim gasta muito milho e arroz. Já temos o estoque vazio. (Dirige-se à Galinha) Vamos minha senhora. (Enxota) Procura uma província que produza milho e chispa daqui.
A Galinha lamenta muito triste, mas antes de sair Tungané lhe dá um microfone.
TUNGANÉ – Espera aí… Não chores, canta! Canta para te divertires.
GALINHA – (Recebe o microfone e canta) Vou comer então aonde ué…? Vou comer então aonde…? Vou dormir então aonde ué…? Vou dormir então aondéeeee…? Ai ué ngana nzambi… Ó zambí… Maka do caraças…
A Galinha sai, mas faz um gesto obsceno que atenta contra a moral de Tungané.
TUNGANÉ – (Fala com a Lu) Estás a ver quem tu queres hospedar aqui?
LU – Tungané, se for o que estou a pensar, agora é que estamos paiados!
TUNGANÉ – Estamos?! (Risos) Tu sozinha é que estás paiada, estás a ouvir? E não me vendas contigo, faz o favor. Do jeito que te estendeste na zunga, é do mesmo jeito que te vais saldar. Tungané é um povo que não se vende, e se alguém quiser me comprar, terá que ser com os meus hábitos e costumes, e dessa forma custo muito caro. (Senta e toca a sua marimba para se distrair).
LU – Tungané, os valores morais, cívicos e culturais não se vendem nem se compram. Cultivam-se.
TUNGANÉ – (Incomodado, dispara mais um murro na mesa) Então nunca mais digas que estamos paiados. (Pega suas coisas de pesca e coloca nas costas).
LU – Aonde vais?! (Preocupada).
TUNGANÉ – Vou no mar…
LU – No mar?!
TUNGANÉ – Sim, vou me afogar.
LU – Se afogar, Tungané?! (Alarmada).
TUNGANÉ – Afogar os meus olhos, afogar os meus ouvidos, afogar a minha boca… Enfim… Vou afogar as minhas mágoas junto com os peixes.
LU – Tu estás doente, Tungané!
TUNGANÉ – Sim, acredito que estou. Sofro de raiva, e não é só porque esses cães ou esses macacos me morderam, mas é por causa de muita merda. Aqui o sol queima como no inferno, e a chuva destrói como o dilúvio! Aqui a poeira e o mau cheiro ainda são o desodorizante preferido, e as lixeiras, o shopping center dos malucos! Mesmo com o mundo globalizado, aqui ainda falta luz e água, saúde, educação e justiça! Sofro de raiva quando vejo carros de luxo desfilando nas estradas que eu asfaltei. Sofro quando vejo castelos dos filmes de príncipe e princesa nas terras que eu desminei! Sofro de raiva quando vejo um médico que não salva uma vida humana sem antes recolher os seus dados pessoais! Professores que cobram valores corporais e monetários em troca da educação! Isso dá raiva!
LU – O que, Tungané?
TUNGANÉ – A gasosa.
LU – Gasosa?!
TUNGANÉ – Possas Lu! Como é então? Não estragues o meu drama com as tuas comédias ya! Faz favor.
LU – “Faz favor” digo eu. Isso não é drama, Tungané, é sátira.
TUNGANÉ – Por isso mesmo. Quando eu digo “gasosa” estou a satirizar a corrupção, percebes?
LU – Ah, a corrupção. Dizem que essa doença ainda não tem cura! Assim como o nepotismo e a impunidade.
TUNGANÉ – Waué! Satirizaste, meu amor!
LU – O quê?
TUNGANÉ – As injustiças. (Pega uma catana) E quando eu pego numa catana para cortar todos esses males, eu só vejo efemérides!
Lu agarra a mão de Tungané e olha a catana.
LU – Isso me faz lembrar o 4 de Fevereiro e o 11 de Novembro!
TUNGANÉ – O início da luta armada e o dia da nossa independência!
LU – (Exaltada) Mas agora, nem início nem independência dentro da nossa própria casa temos! Estamos a ser invadidos, Tungané.
TUNGANÉ – E é só agora que percebes? Calma, Lu. Já resolvo isso. (Fala para os vizinhos que supostamente estão do outro lado da porta, a ouvir a conversa do casal) Escuta aqui, ó tu que estás por detrás dessa porta, se fores um extraterrestre é melhor
voltares lá p’ro céu discutir com Deus, porque nós aqui também estamos com muita raiva dele. Há muito tempo que nos prometeu o paraíso, e até agora nem só uma maçã do jardim do Éden ele nos atirou! Temos motivos para ter raiva ou não? Responde
extra…
LU – Calma amor!
TUNGANÉ – Qual calma, qual quê! Com esses gajos não dá para ser pacífico. Experimentam-te numa pesquisa que te deixa com raiva à vida toda. Comigo ninguém vai fazer experiência. Ai do extraterrestre que tentar me tocar… Meu Deus!
Aiaiaiaiaiai… Não vou me responsabilizar pelos prejuízos. (Esgrima com a catana) Fico matumbo, viro bicho, rasgo o céu, parto o sol, furo a lua e roubo as estrelas.
LU – E a terra, Tungané?
TUNGANÉ – A terra já está perdida. Aliás, está dividida. Tipo pizza.
LU – Pizza?!
TUNGANÉ – Sim. Bolo, comida… Epa! Cada um vem e come parte dele.
LU – Acho melhor abrires a porta.
TUNGANÉ – Tens razão, vamos abrir. Se forem mesmo eles, ao menos já estarão bem conscientizados de que nós temos raiva. E é bom que saibam que a minha raiva não é de qualquer animal.
LU – E é raiva de que, então?
TUNGANÉ – É a raiva do veterinário.
LU – Hum! (Duvidosa)
TUNGANÉ – E dizem que o meu caso é acidente de trabalho! Eu já vacinei vários tipos de animais ferozes! Cobra, jacaré, hipopótamo, leão, onça, hiena, etc… E não são esses animais domésticos que vão me amedrontar. (Invocado) Vamos nos morder…
Tungané sente uma dor na barriga e grita.
LU – Meu Deus! (Faz o gesto da Santa Trindade).
TUNGANÉ – Ai mo deujo! Possas! (Contorcendo-se de dor na barriga).
LU – É o que mais então, Tungané?!
TUNGANÉ – Estão a me andar umas coisas, Lu!
LU – Que coisas?
TUNGANÉ – São as lombrigas.
LU – Lombrigas?!
TUNGANÉ – Sim… Também estão decepcionadas comigo. Ora como, ora não como. E se como bem, vomito. Se como mal, me cago. Possas! Isso dá raiva ya!