O homem que acordou sozinho na terra é um romance que traz temáticas voltada a existência humana, cheio de enigmas e lições de vida. Trazemos como proposta de discussão “propósitos e valores da existência humana” por ser uma temática que requer um questionamento e reflexão humana, obrigando-nos a estudar e compreender os conceitos do existencialismo, já que aborda uma solidão profunda, e um trauma depois da perda. O livro aborda sobre propósitos, culpa, traumas e uma angústia existencial.
Ao falarmos da existência humana nesse romance, recorremos ao existencialismo, apoiando-se metodologicamente no Materialismo Filosófico como Teoria da Literatura para explicar e aplicar os factores que levam o homem a questionar a sua existência voltada aos propósitos, aos valores e a essência de forma racional e dialéctica. Antes de entrarmos na obra em questão, vamos definir o que é existencialismo. Não existe uma definição pura ou clara sobre o que é existencialismo, mas segundo Mondin (1977, p. 43) é
corrente de pensamento que concebe a especulação filosófica como uma análise minuciosa da experiência quotidiana em todos os seus aspectos, teóricos, e práticos, individuais e sociais, instintivos e intencionais… da raça humana.
Enquanto que para Flynn (2006)
o existencialismo é uma forma de investigação filosófica que explora o problema da existência humana e centra-se na experiência vivida do indivíduo que pensa, sente e age.
Ambos autores entram em consonância quando dizem que o existencialismo se centra nas experiências vividas pelo homem, e essas experiências podem ser individuais e colectivas, tendo em conta a forma como pensam e agem. Na obra encontramos essas particularidades que fundamentam esses argumentos preconizados partindo da contradição entre a capa e o título da obra, pois trata-se de o “homem que acordou sozinho na terra”, mas quem segura o planeta terra na capa é uma mulher, por que uma mulher se o título é “o homem que acordou sozinho na terra”? O evento que dá título ao livro ou que move toda história é quando a Mãe, neste caso a Hindi e filha, Nyeri viajam juntas e se depararam com um homem que carregava uma bola vermelha, chamando atenção da filha com um sorriso, e aproximou-se delas para pedir ajuda. Depois do evento, sucede o acidente onde morre o seu esposo e sua filha que causou a ela um trauma como a única sobrevivente que a faz questionar sobre a sua existência e que a faz pensar que é homem. Observemos:
– Ainda sentado, em prantos, debaixo do barulho do vento, pus-me a gritar como um louco, não, como homem que perdeu tudo, não, como um louco, o último louco do universo! Onde estou? Onde vocês foram? Quem sou eu? Quem sou eu, porra! Quem sou eu? (Cassule, 2024, p.32).
No excerto acima vemos, em primeiro lugar, a manifestação da procura pessoal ou da sua existência enquanto humana que leva a diversas questões individuais para a descoberta de si, em segundo lugar, vemos a própria confundir-se como homem, o que se explica como sendo fruto do acidente onde morreram seu esposo e a filha, menos a Hindi, ficou em coma durante dias, e durante esse período, sonhou com o seu esposo Waldemar, no sonho ela era o marido, todas acções e acontecimentos vividos por eles, recaí em apenas um único ser, o Waldemar causando nela uma espécie de uma fuga de personalidade e quando desperta conta a sua mãe o sonho. Contemplemos:
– Eu sonhei com ele, mãe.
– Quem, esse tal demónio Marte?
– Não. Waldemar.
– Como foi?
– No sonho eu era ele, e vivi sete dias em Benguela, mas não encontrava pessoas. Ninguém. O mundo era só um vazio, sem nenhum vestígio de ser vivo (Cassule, 2024, p.130).
Somos responsáveis pelos nossos feitos, nós escolhemos o que fazer da vida, cada decisão que tomamos interfere no nosso presente e no nosso futuro. Vivendo num mundo em que todos estão sujeitos à morte, devemos estar preparados para a perda, mas ainda que tenhamos conhecimento da existência da morte, nunca estamos preparados para perder alguém importante na nossa vida.

O “homem”, que acordou sozinho na terra, o qual importa-nos referir que é uma mulher, ao ficar desacordada nesse curto tempo, sonhou que estava sozinho na terra, durante o sonho a “angústia existencial” tomava conta dela, a desorientação e a ansiedade diante de um mundo aparentemente sem sentido. Observemos:
Segui em passos moderados, cambaleante e atento a iminentes surpresas. Arrastei-me por pelo menos alguns quilómetros e, enquanto caminhava, milhões de ideias abalavam os meus pensamentos, questões, dúvidas, medo, crise de identidade e todos os sentimentos negativos e aterradores (Cassule, 2024, p.21).
Aqui vemos uma manifestação da “angústia existencial”, onde a personagem tem o seu ponto de partida a sensação de pavor, desorientação, confusão ou ansiedade quando lhe surgem “milhões de ideias abalavam os seus pensamentos, questões, dúvidas, medo, crise de identidade e todos os sentimentos negativos e aterradores” fruto da acção de liberdade de escolha que teve em ajudar o senhor da bola vermelha que teve como consequência a morte dos ante queridos. A “angústia existencial” é definida como
um sentimento difuso e desconcertante que sufoca a existência e emprega a vida do indivíduo de tristeza e dor; é uma zona limítrofe, um pântano de sombras aterrorizantes, um estranhado de sentimentos incongruentes, um abismo profundo, que o indivíduo carrega dentro de si (Olivíeri, 2009, p.22).
Durante crises existenciais, o indivíduo se detém, percebe que algo não está certo e começa a questionar suas próprias limitações. Esse processo o leva a uma consciência do vazio. A angústia reflete a realidade de um ser incompleto, responsável por sua própria vida, mas incapaz de moldá-la perfeitamente. O vazio representa o contraste com a plenitude do ser, funcionando como um farol que destaca a distância entre o nosso estado actual e o ideal que desejamos alcançar.

É importante evidenciar que antes da personagem entrar em “angústia existencial”, no decorrer da trama um homem que carregava uma bola vermelha, chamando atenção da filha com um sorriso, e aproximou-se delas para pedir ajuda. A partir de uma caracterização direita, era um homem branco, mais de quarenta anos, nariz fino e comprido demais. Pedindo ajuda a Hindi que o ajudasse a levar o globo que carregava na mão para o seu sobrinho que vive em Viana do Castelo, e que estava em coma e o mesmo demonstrava saber de coisas que não lhe foram contadas, pois conhecia a Hindi e a sua filha e sabia até onde a Hindi e a sua filha estavam a ir. Observemos:
– Tenho menos de dois minutos, senhor. O que tem este lindo globo?
– É para o meu sobrinho que vive em Viana do Castelo, ele fará anos amanhã, como mau tio que sou, mau no sentido pobre da palavra, não tenho nada além disso para lhe oferecer de presente.
– Não consigo ir a Viana de Castelo. É aqui onde a senhora é chamada a ajudar. Preciso que me ajude a transportar este presente. Por favor, senhora Hindi (Cassule, 2024, p.73).
(…)
– Pronto. Tem mais algum recado, senhor?
– Não. Ele saberá as minhas palavras através de Marte.
– Marte?
– Sim, este globo é o Marte.
– Entendo, um planeta que fala a língua dos homens.
– Alguns homens falam línguas deles, controlam o tempo e denominam a sequência dos acontecimentos (Cassule,2024, p.76).
De acordo como o excerto acima, Hindi tem a liberdade de escolha como uma inquietação existencial, ou seja, surge no sentido de que ela sofre na pele a responsabilidade de ter que decidir entre ajudar ou não, e essas situações o colocam em uma encruzilhada de inúmeros caminhos a escolher. Ao escolher ajudar, essa liberdade de escolha teve a sua consequência,
o indivíduo possui liberdade de escolha para fazer opções em sua vida e, em contrapartida, esta consciência de liberdade suscita no sujeito o aterrorizante sentimento de angústia (Sartre, 1997).
Por isso a Hindi sente-se culpada pela morte do marido e da filha. E é esta mesma culpa que justifica, como já evidenciamos acima “angústia existencial” ou a fuga da personagem a sua própria realidade. A angústia existencial é considerada uma força obscura, potência irracional, podendo até mesmo ser classificada como um suplício, muitas vezes contraditório: o indivíduo sente-se num mar de dor e desatino, e sua estrutura psicológica fica comprometida, levando-o a sentir frustração e tormento. Observemos:
– “Eu os matei, mãe. Tenho muito sangue nas mãos, tudo porque não ouvi a minha filha” (Cassule, 2024, p.129).
– “E agora, mãe? Como vou viver sem o meu comandante, como vou seguir a minha vida sem a minha vaidade, a minha queniana?” (Cassule, 2024 p.111).
Lucas Cassule usa um enredo não linear para narrar os acontecimentos. O enredo não linear é aquele que não segue uma sequência cronológica, desenvolve-se descontinuamente, com saltos, antecipações, retrospetivas, cortes e com rupturas do tempo e do espaço em que se desenvolvem as acções. O escritor usa essa técnica para descrever os episódios da história. No primeiro capítulo, a narração é feita na primeira pessoa do singular, um narrador personagem, já no segundo capítulo, a narração é feita na terceira pessoa, narrador onisciente. Vejamos:
“Agitei levemente a cabeça, do lado esquerdo, havia uma janela cuja luz ambiente resplandecia por toda sala” (Cassule, 2024, p.15).
Hindi tinha escolhido o melhor momento para as férias de Verão. Pela primeira vez em muitos anos, viajou apenas com a filha. Bem… viajou com o esposo, mas apenas ela e a filha ficariam por Lisboa (Cassule, 2024.p.37).
Na primeira citação, vimos que a personagem é o narrador em primeira pessoa, relatando os factos. Enquanto que na segunda citação, o narrador é onisciente, a narração é feita na terceira pessoa. O escritor usa uma narrativa alternada a outra, onde os acontecimentos aparecem na primeira pessoa, e em outras na terceira pessoa, com cortes e saltos.
Tudo tem um propósito, as coisas não acontecem por acaso, a um motivo especial para as coisas acontecerem, precisamos entender qual é o nosso propósito, e porque existimos? O que a vida reserva para nós? Todas estás questões são causadas pelo caos da existência humana.
– “Quando a missão já foi escrita, qualquer ser humano é incapaz de mudar uma única vírgula” (Cassule. p.130).
Na frase acima citada, estamos perante ao existencialismo cristão, segundo Kierkegaard existencialismo cristão consiste em termos consciência de nossas escolhas. Isso se dá quando os seres humanos deixam de ser sujeitos óbvios para eles mesmos e passariam a questionar sua existência perante a criação. Para os ateus, a vida não tem nenhum propósito especial, mas para os cristãos, a vida é feita de propósitos.
A existência humana é uma temática que requer vários níveis de reflexões, e que nos obriga a estudar algumas áreas da psicologia, para entender o comportamento humano baseados no existencialismo.
Estamos nesse mundo por um propósito, e o homem que acordou sozinho no mundo, mostrou-nos que não conseguimos controlar tudo, e que estamos sujeitos a enfrentar coisas na vida por um propósito, e que não escolhemos o que acontece de ruim nas nossas vidas, algumas coisas acontecem por merecermos, e outras por um propósito que desconhecemos. Somos movidos pela culpa e pela angústia existencial, sem ao menos saber o porquê de tanta provação, até compreendermos os nosso propósitos e valores existenciais. Somos livres, fazemos as nossas escolhas, mas dependemos de um criador que determina e faz as coisas acontecerem segundo a sua vontade.
Referências bibliográficas.
Barglin, R., & Binda, S. (s.d.). Ser autêntico e inautêntico em Martin Heidegger: uma análise antropológica do “Dasein” na contemporaneidade.
Colette, J. (1929). Existencialismo (Paulo Neves, Trad.). Porto Alegre: Editora
Lisboa, C. S. (2016). Introdução ao existencialismo: Perspectivas literárias.
Mondin, B. (1977). Curso de filosofia (6ª ed.). São Paulo: Paulus.
Santos, M. S. (2017). Trauma psicológico e resiliência: Relação com o tipo de evento potencialmente traumático e o crescimento pós-traumático.
Sartre, J.-P. (1997). O ser e o nada: Ensaio de fenomenologia ontológica (P. Perdigão, Trad.; 5ª ed.). Rio de Janeiro: Vozes.
Warren, R. (2023). Uma vida com propósitos. Editora Vida.