Uma parede. Uma parede velha e rachada. Uma fenda.
Makengu sustentava a cabeça com a barriga das mãos. Tal qual não era o pensador. “Museos como as bibliotecas, são chatos”. O fim-de-semana na praia com os amigos tinha sido trocado por uma visita ao Museo. Nada disso teria acontecido se Nkengi não tivesse apresentado uma dúvida sobre a veracidade das histórias contadas. Sabia-se que depois que os arquivos foram roubados e falsificados, sobre a história, o presente nunca mais foi real.
— Nem tudo é mentira. Há verdades também! – Luwandinu disse com ar de sabedoria inflando-lhe o peito.
“Reinos serpenteando a terra. Homens da cor do bombó de mandyoka. Invasores. Sábios sacrificando a pele por mijinhas…”
— Olha, Luwandinu. Outro dia a mãe da Paula falava sobre um suposto cientista. Um tal de Fred ou Frud. Um daqueles nomes estranhos que só os bem letrados sabem dizer. O que isso tem a ver com a conversa? Ó, Luwandinu! Tem tudo a ver. É que esse suposto cientista desenvolveu um arma capaz de entrar na mente das pessoas e bagunçar memórias e pensamentos. Coisas dos espíritos, como dizia a avó. Sabes onde quero chegar, não sabes?
— A história não pode ser apagada. Fica na mente. No sangue. Na terra. Esse tal de Fred de que a tia Paula falou não sabia das coisas. Porque aqui as coisas funcionam assim desde sempre. Os mais velhos vivem e contam detalhadamente aos mais novos. Os mais novos fazem chegar às novas gerações. Hoje estamos aqui. — era impaciente às façanhas da irmã.

— Quem conta um conto não aumenta sempre um ponto? Ou será reticências?
Para fim de debate, o pai declarou que o fim-de-semana seguinte seria descobrindo o passado. — Está decidido! — anunciou — vamos ao Museo! Makengu arrependeu-se de cair nas provocações de Luwandinu. Chegou tarde demais. Dentro do Museo.
Por fora, simples paredes banhadas em branco. Amarelo. Tijolos. Por dentro, o passado no presente. O teto há cinco metros do chão. Formava um arco tocando as paredes. Cheirava a mofo refinado. O ar condicionando amenizava o efeito. Misturada à atmosfera, madeiras. Ferros. Papéis velhos. Cimento. Perfumes. “Uma praça de odores”.
Um grito abafou a sala. Makengu tinha dado de cara com um horror. Rostos de olhos serrados. Dentes triangulares. Argolas. Tranças estranhas na cabeça. E panos ao que deveria ser o pescoço. “Parecem argolas”.
— É só a máscara da Mwana Pwo. — Luwandinu queixou-se
— Mwana quem?
— Afinal, o que te ensinam nas aulas de história?
— Utopias?
Tinham mais imagens estranhas como as de Mwana. Algumas piores. Esculturas de animais. Representavam o povo, dizia Luwandinu. O mapa dos grandes reinos. Cada vez mais hoje. Na sua maioria, retratos. Navios. Homens chegando. “Como não deram pelos olhares traiçoeiros?” As aulas de história assaltaram sua mente dali em diante. A voz arranhada do professor Lupeka transfomara-se em acordes na sua memória. “Freud poderia apagar a memória de uma naçâo?”
A visita estava quase ao final. Nem palankas. Nem flechas e katanas na guerra de libertação. Nem esculturas de Njinga Mbandi e Mandume ou os búzios antiquíssimos a convenceram da veracidade que Luwandinu defendia com fervor. Apesar de já a ter visto umas boas vezes naquele dia, o Pensador parecia estranhamente diferente. O vento atravessou as paredes do Museo e sussurrou em seu ouvido disfarçado de vozes. Pensador agora tinha dourados brilhos reflectindo sobre seus olhos. Desenhos em letras ou letras em desenhos como as figuras no Museo. Hipnoticamente, ao tocá-lo, soou um tambor. Um trovão. O tempo. Chuva. Vozes novas.

“Só posso estar a sonhar!”
Bananeiras verde-claras invadiam a terra. Um castanho-escuro contrastando com o amarelo das espigas de milho. Protegiam os homens e mulheres vestidos de carvão e suor. Traçavam com os dedos no chão códigos. Desenhos insignificantes. Esperança. Makengu olhou á volta. Nada lhe era familiar. Nem os homens vestindo elegantes trajes á carvão. Nem as plantas verdes. Nem os odores que viajavam pelo vento. Nem nada. Antes disso, apenas lembrava da estátua pensador.
— Invandir a base?! Não podemos invandir a base! — disse um homem de pouca estatura
— Ngangula, oiça o que Feti diz. — soou uma voz branda e feminina
— Se continuarmos esperando não sobrará ninguém para contar história, Lueji. — Ngangula bravou
— Um passo e falso e a liberdade voltará a ser apenas utopia. — Lueji, a mulher, disse — Mandume e Njinga voltam em breve, os outros reinos, nossos irmãos virão em nosso favor. Eles têm armas místicas. Nós só temos mãos e objectos normais. Espere mais um pouco Ngangula.
O professor Lupeka já algumas vezes tinha falado sobre os movimentos que estiveram na frente para a libertação. Makengu estava agora frente a eles. Ngangula era um homem forte e astuto no olhar. Olhava várias vezes para os desenhos no chão. Sua esperança de liberdade estava aí. Feti apesar da sua baixa estatura emanava gentileza. Lueji, Lueji era Lueji.
Porém, não foi tal qual o professor tinha dito. Feti traiu o reino. Ngangula não esperou a chegada de Mandume e Njinga. Armas místicas e objectos normais colidiram. Mulheres e crianças correram. Homens bradaram em fúria e medo. Um pintor macabro enfeitou o chão de escarlate. Tinta de fuba de bombó. Tinta de carvão e suor. Mulheres também lutaram. Lueji guiava as mais valentes que se predispozeram a protejer seu reino.
Aos olhos de Makengu, uma ópera desafinada. Os homens dos quadros eram impiedosos. Os homens de carvão estavam decididos. Durou o que foi um tempo. Makengu fechou os olhos e cobriu os ouvidos. A música não lhe era agradável.
O silêncio era barulhento. Seus ouvidos zumbiam. O efeito passou quando se ouviu o primeiro grito “Liberdade!”. Era uma noite azul-escura e fria. As estrelas aplaudiam timidamente. O grito de Ngangula foi ouvido por todo o reino. Já quase ninguém podia gritar de volta. O que sobrava eram amontoados de carne sem alma. Escarlate. Bombó. Carvão.
Lueji sentada ao lado de Feti, morto, meditava. “Eram livres agora. Mas quem? Não havia mais Reino. Pessoas fazem o reino. Os que tinham seus corpos não tinham mais alma. Liberdade para quem?” Ngangula ouviu seus pensamentos e orou aos antepassados. Os antepassados foram gentis e ouviram-no. Derreteu-se sobre a terra. Rios. Terras. Flora. Fauna. Vidas. Um Reino. Um tambor. Um trovão. O tempo. Chuva. Vozes antigas.
— Makengu! Makengu! — Nkengi chacoalhava a irmã
— Parece que alguém gostou do pensador. — sorriu o pai
— Foi um sonho? — Makengu perguntou ainda hipnotizada, procurava a sua volta por vestírgios
— O quê?
— Ngangula, Feti…
Luwandinu sorriu. — É mais fácil acreditar em mitos que em histórias?
— Talvez Freud não tenha feito nada. Cada um escreveu uma estória sobre o reino que habitou em seu coração. E nos esquecemos.