29Abr

A obra literária de Costa Andrade já há um tempo que nos chama atenção para o contínuo exercício da investigação. Ao mantermos contacto com a obra poética de Costa Andrade, verificamos a necessidade de criação de um maior espaço nos debates sobre poéticas e por que não em projectos de obras? É simplesmente pelo desejo de contribuir para o acervo de referências da poesia angolana no seu espaço que sentimos sempre o chamado da ciência para mais investimento no exercício da busca pelo sentido no ciclo de desenvolvimento dos estudos no campo da literatura. E é sempre uma obrigação construir uma trajectória de investigação que não parta apenas do desejo de usufruir da experiência estética enquanto leitores, mas ler e dar a ler, explorar e encetar um enfrentamento que tem apenas começo e que por si só vai descobrindo e desenhando continuidades em outras vozes.

 A preocupação é com a obra do autor. Então foi melhor ter começado com esta terra de acácias rubras, numa edição da Casa dos Estudantes do Império, publicada em 1961. É parte da colecção autores ultramarinos. É uma obra que assinala o valor da terra através do canto que a ela destina, sendo a terra um dos significantes fortes, dando marcas de um diálogo entre o sujeito com o espaço e a natureza, ao mesmo tempo com as entidades do lugar. A demarcação, através da poesia, das relações entre o espaço e o ser.

A terra é a origem de tudo. Este poemário começa por apresentar uma abordagem lírica, uma concepção poética, uma leitura da origem das coisas fundamentada na pedra e na terra. Dialoga com a ideia de terra-mãe, o princípio que tudo gerou e que tudo sustenta. Sobre a importância da terra, muitas abordagens a qualificam e compreendem de diversas formas, convergindo na ideia da sua importância.

A terra é fundamento das coisas: é fonte de alimento, é a gestora da vida, fonte da saúde, é ela que alberga tudo. O poema que se segue é uma sugestão de elementos significantes, propondo um olhar dos homens a terra. E aqui reside também a poesia, e a importância da própria literatura, porque ela tem consciência da diversidade e multiplicidade das estruturas das coisas constituintes do universo, e a poesia olha para elas de forma particular, nas suas constituições e nas suas relações.

A rocha o vento a ave

deslumbraram-se

Do seio

a terra transformou-se em homens…

e vieram braços

e vieram homens

a terra transformou-se em pão…

e mais homens

e mais braços

e anseios

a terra transformou-se em luz…

e luz

e homens

e braços

até que a terra se transforme

na terra dos seus filhos.

(p.8)

O terceiro poema deste conjunto é feito de pontos contínuos. Para interpretá-lo, deveríamos olhá-lo como uma manifestação da “poesia concreta”, pode ter sido um erro ou não, os estudos ensinaram-nos a ponderar antes de classificar qualquer acção da arte. Tendo em conta que na matemática os sinais têm leitura e significado, estes elementos enquadrados no conjunto dos textos de Costa Andrade, que se fundamentam no título global de terra de acácias rubras, remetendo-nos a Benguela, mas que os textos se estendem em representação de um referente real que é um elemento geográfico de maior dimensão, representado pelo significante terra, podendo referir-se a Angola. Como podemos ler através desse poema:

Havia conchas de mar

múcuas e pitangueiras

falas de gentes quiocas

vozes de terras ganguelas

gritos de homens cuanhamas

o amor de jovens luenas

e lendas de mucubais

 

 inconformadas presenças

pairando em cada silêncio

em cada vagem que seca

como promessas de pão feitas fome

na realidade diária.

(p.34)

A linha contínua feita de pontos já referenciada, que parece ligada, é uma linha horizontal, em oposição a uma linha vertical, tendo em conta a lei natural da dualidade. Esta linha dá a ideia de um objecto plano, uma superfície, e se não for erro nem proposta de significação da ausência das palavras e da importância do silêncio, então é uma linha que também nos propõe a ideia de terra. E não poderíamos estar longe dessa ideia, já que o título, que corresponde a uma ideia global do texto supõe uma leitura da terra pela menção deste significante, referência de um elemento cósmico, terra, que está presente em quase toda obra.

Do quarto ao sexto poema, dor, sangue e triunfo ligam-se a um interdiscurso com a história da colonização e o sonho da liberdade. Nos três poemas, o sujeito poético começa por indicar a existência de uma dor colectiva, que dói mais a si, porque é a multiplicidade das feridas de si, do irmão e da terra. E o vermelho das acácias menciona a terra e provavelmente o sangue derramado, perpassando nas expressões dos versos um sentimento de pertença e da consciência manifesta de laços de irmandade:

A flor vermelha das acácias

será facho de vida

a florir do sonho

que nos preenche.(p.12)

Identificando-se com a terra, o sangue e o sonho da liberdade, o sujeito poético enuncia a existência de uma certeza dos dias de glória, em que não mais haverá lágrimas nem a necessidade de se lembrar delas. A previsão ou o sonho de um futuro para dar aos filhos com a história de glórias, conforme cantado actualmente na música os meninos do Huambo, do poema de Manuel Rui. Ao ler estes versos e os poemas de Costa Andrade, cujo título maior e único é o primeiro do livro todo deste poemário. No presente, além da riqueza temática e formal destes poemas, da bela simplicidade e do rigor poético, o leitor é convidado pela própria poesia a confrontar o sonho do poeta e a dimensão da palavra com o seu diálogo com cada contexto de leitura e de presença desta poesia. E deste confronto, pela poesia, além da poesia, por meio deste poemário, afronta o leitor a ideia da utopia do pós independência, que o leitor saberá relacionar, dialogar e/ou interiorizar para, através da poesia, dar-se ao encontro com a realidade palpável de sonhos que agora, por mais que sejam sonhos e que tenham a função de assim serem até que pela realização isto deixem de ser, estão em estado de bolorização. E está aqui a poesia para lembrar e julgar o tempo. Talvez. Ou confrontar a ignorância dos homens em relação ao amanhã? ou quê, saberá mais o leitor.

 

nem mais lágrimas vermelhas

para dar…

(p.13)

Por mais histórias que um poema queira contar, a palavra poética  atravessa o tempo e se ressignifica, muito pelo facto do mundo ser um espaço de coisas que se repetem no tempo e no espaço, a lei da circularidade, por isso, por bom tempo, e talvez sempre, as palavras tenderão a ressignificar-se com as coisas, outras vezes, as palavras virão para julgar os tempos, conforme já referimos antes, e a negligência humana. E as palavras, para isso, não precisam mudar. Por que vem aqui o caso das palavras julgando o tempo e a negligência humana? E vem também o sonho embolorado? por causa da espera. Antes a espera da liberdade, a espera da autonomia, a espera do triunfo. A espera que persegue o homem. Que persegue o angolano, por mais que aqui caiba saber por quê, pela incitação da poesia, que fique para o leitor esse exercício de auscultar causas e cobrar contas. E agora? Essa espera expressa no contexto das lutas, à espera de um socorro, nesse contexto da actualidade a ressignificação da espera destina-se hoje a quê? A nós cabe sugerir muito mais que ditar. E aqui, é com Costa Andrade com quem se dialoga através desta obra terra de acácias rubras:

 

Havia

 havia

havia

 

humanidades de espera

como promessas de pão.

Outubro,                                             1960.

(p.35)

No poema ix aparecem novamente as reticências como se fossem sinais de um quebrar da continuidade da fala, uma interrupção do discurso poético. O silêncio. Alguns poemas têm apenas números e outros já têm títulos. Uma boa parte dos poemas são maioritariamente feitos de nomes. Dedicados às vezes a um amigo, uma amiga ou apenas com a visibilidade de um sujeito poético que se dirige a alguém por quem se poderia ter maior intimidade e apreço. Outras vezes, os poemas trazem marcas de diálogos interiores sobre o eu do sujeito poético, que tem noção do outro, sempre em ligação com a terra, a qual também se dirige o eu lírico. A qual dirige cantos e elogios, sem deixar de lado a sua veia crítica só pela menção de factos que se interligam com a terra e terão deixado marcas nela.

Tenho o segredo dos capinzais

soltando ais

ao fogo das queimadas de setembro

tenho a carícia das folhas novas

cantando novas

que antecedem as chuvadas

tenho a sede das plantas e dos rios

quando frios crestam os ramos das mulembas. (p.24)

 

(…)

Se o fogo das queimadas

fosse a vida

a vida não valia o sacrifício

há muito que o sonho se perdera…

As queimadas devoram as anharas

e o fogo apaga-se com a morte.

(p.28)

 

Este poemário é como já referimos um canto a terra, pelas suas belezas, qualidades e laços. Mas também é uma denúncia dissimulada em canto contra os danos do ambiente, que prejudicam consideravelmente a terra, como lemos na estrofe anterior, evidenciando consciência do sujeito sobre os enormes benefícios que têm um ambiente terrestre colorido, aromatizado e harmonizado pela relação entre os seres vivos na natureza, transmitindo ao poeta uma paisagem, ambiente e sentimentos dignos de exteriorização para marcar nas páginas da história a presença benévola das plantas e das aves para o homem/mulher, para que este(a) possa sonhar e absorver a vida que flui de si, em si e ao seu redor.

 

… e quando chega o canto das perdizes

e nas anharas revive a terra em cor

sinto em cada flor

nos seus matizes

que és tudo o que a vida me ofereceu.

(idem)

E ainda no amor, num diálogo entre o sujeito e a amada, finca-se um olhar à

aspiração

Olha amor

e solta enfim

o brado da certeza

que não é crime

o grito à vida

e ao amor que se adivinha.

(p.25)

Como quem conta uma história, mas quer cantar também uma figura, Costa Andrade dedica parte dos poemas dessa obra a um tocador de quissanje, marcando neles, conforme a forma ritmada dos seus versos, uma história, traços de rostos com histórias entre semblantes e ritmos, os caminhos de um povo e muitas memórias, marcas da terra e dos passos de quem terá vivido dias incertos:

 

… e vinham

das distâncias

eram das terras da lunda

e os regressados das ilhas

e as crianças que não iam

muito p’ra além dos luandos

e das portas

e eram velhas

 

(…)

Alongava-se na noite

canto de escravos passados

vozes de contratados

o teu quissanje dolente…

(p.32)

 

A constituição da poesia compõe-se das leis ora arbitrárias e lógicas, ora aparentemente infundadas e na maioria das vezes poeticamente construídas e expressas para a regulação do fazer poético. Não há arte, por mais que a sua natureza seja interventiva e insurgente, que não tenha regras nem normas. É a própria beleza que assim o quis. E a arte é filha da beleza. A beleza constitui e deve constituir o ADN de qualquer obra artística.

Ao abrir o seu poemário, feito de 21 poemas, dos quais dois são aparentemente só linhas contínuas, o leitor depara-se antes com um poema, definindo a proveniência da poesia andradeana, uma concepção poética, conforme fazem hoje Marquita 50, na sua prosa poética de abertura em Assimetrias de Mulher (2018) e Conceição Cristóvão no seu reencontro com o fogo da palavra através da sua nova obra Silêncios na Fímbria da Voz, …falam das perdas das pedras às pedras (2023), no primeiro poema poesia: garças e voos inteligentes da alma. Aliás, os poetas estão sempre em diálogo constante. Estes cá, e não só Costa Andrade, mas todos os poetas que tem o seu próprio manual do fazer poético sabem que as formas são delimitáveis sempre, mesmo que implicitamente, por crenças. É esta a de Costa Andrade:

I

A poesia nasce como os rios

e as pessoas

as avenidas

e o mar

Porque a poesia vive em tudo

e em tudo se confunde

com o sonho.

(p.7)

Todos os poemas desta obra compõem-se de cargas de significação alusivas à história local, ao lugar e às suas gentes, bem como os seus viveres, aludidos sinteticamente pela consequência da própria sintaxe poética, ao sonho, ao amor, etc., que resultariam de extensos exercícios interpretativos, quando estes não se constituem apenas da intenção de sugerir ou visitar a poesia, mas também de a avaliar do ponto de vista do seu valor, medindo por meio de vários e diferentes testes de aplicabilidade do sentido, da abrangência e profundidade da sugestão e do percurso da própria poesia pelo tempo. E por mais que se cale o autor, a obra, ainda que no abismo do silêncio estiver, acordará e falará. Leia-se Sanzala morta, do qual alguns versos se seguem,

 

Erguem-se esquinas

na noite

vozes de rios secos

sobre as pedras

que os beberam

com suas bocas de musgo.

(p.38).

 

São poemas escritos entre 1959 e 1960, épocas de sofrimentos, lutas e insurgências. Em que a cor da pele era aditamento e justificava acções há muito preconizadas. Em que o destino de pessoas nascidas livres era empobrecido por imposições fundadas em aspirações ambiciosas e nada abonatórias para o reflorescimento do ciclo vital da humanidade. Esta obra de Costa Andrade traz as marcas de tempos de secura como as marcas que o leitor também poderá ler em Estrada da Secura de Luís Kandjimbo. A voz da terra e dos que nela passam é a poesia que capta. E ainda é preciso ler.

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