29Abr

A obra de Aníbal Simões é um contributo para a cultura geral sobre o povo angolano, por meio dela é possível viajar a um Namibe colonial e conhecer parte da cultura do povo kuvale, suas crenças, valores e hábitos que os constituem, além dos conflitos socio-culturais que enfrentam.

A apreciação desta obra será uma breve viagem filosófico-cultural na tentativa de consolidar as inquietações contidas na seguinte questão: “Até que ponto a cultura ou a mescla de culturas pode ser uma benção ou maldição para um povo, uma sociedade?”

Dentre os vários aspectos destacados ao longo da narrativa, existem alguns que por mais que fossem maquilhados não passariam despercebidos aos olhos dos leitores, a opressão colonial como uma maneira de manipulação e controle das sociedades dominadas. Um elemento que é bem recorrente aquando de uma colonização, para a desestabilização dos povos, tira-se-lhes a língua e, além disso, ainda se adiciona uma cultura e ideologias totalmente opostas e contrárias àquilo que sempre foram. Uma espécie de formatação e controle total das colónias. O que se confere no seguinte excerto da página 7:

/Chamo-me Pepela, embora nos arquivos do Registro de Identificação de Moçâmedes conste o nome de Maria da Conceição das Neves, nome atribuído à última hora, por meu pai ao aspirar a que eu beneficiasse das prerrogativas do sistema colonial./

Apesar disso, o nacionalismo e a actitude de pertença por parte dos personagens, faz-nos pensar que talvez seja possível tirar o homem da cultura, mas não a cultura do homem, já que ela impregna profundamente em seus genes sendo parte da sua informação genética e ainda que se converta a uma nova cultura e ideologia, traços da cultura prima sempre serão encontrados mesmo que em vestígios quase invisíveis.

Mitos e crenças diferentes fazem parte de cada cultura que os guiam e têm um papel muito importante em suas vidas. A crença do poder dos mais velhos para a tomada de decisões e protecção das aldeias é uma realidade que existe até aos dias de hoje ainda que as civilizações estejam distribuídas de uma maneira diferente do que costumava ser. No caso dos kuvale, por exemplo, o elao (espaço sagrado) e o murilu (o fogo) eram elementos fundamentais daquela cultura. Isso na página 9.

O pequeno trecho na página 10:

/Um dia… estava eu a ordenhar uma vaca… quando uma voz me chamou do elão. Era o homem mais raramente visto, mas o mais presente nos meus pensamentos: meu pai./

Faz-nos pensar que a relação pais-filhos na cultura bantu costumava ser limitada e restrita por uma questão de hierarquia e respeito. Hoje em dia, dependendo da posição tomada pelos pais existe uma relação mais ampla e social entre pais e filhos. Não seria esse um ponto positivo que os povo bantu receberam do ocidente? Uma deslimitação dos relacionamentos afectivos permitindo que houvesse um maior desenvolvimento e união nos lares?

A analogia do papel e visão da mulher nas diferentes culturas também é um factor bastante pertinente e notório já que, por exemplo, a mulher bantu, tendo em conta a valorização cultural inicial, é colocada numa espécie de barreira social tida como minoria e sem voz, reduzida aos seus afazeres como “mulher dona de casa” e responsável pela educação dos filhos. A mulher actual, com fortes influências do Ocidente, está aquém do que foi, tendo a liberdade de expressão e decisão, por meio das ideologias do movimento feminista e dos direitos humanos, a permissão para andar pela sociedade quase na mesma proporção que o homem, que por sinal, sempre teve seus direitos e privilégios postos acima. A mulher de hoje é parte integrante da sociedade e desempenha um papel mais amplo que não se resuma apenas ao ser bela, dona de casa e uma cúpula de reprodução sexual. É importante aqui abrir um parênteses para frisar que tais costumes não se limitavam apenas à cultura bantu ou africana, haviam, ou ainda há, países ocidentais que trazem essa realidade como parte de suas culturas e crenças.

O facto de, principalmente as mulheres, não terem poder de decisão e escolha sobre as suas vidas era também uma causa de muitos conflitos sobre as tradições e culturas dos povos, pois, inevitavelmente, sempre haverá um revulucionário, alguém que irá contra as ideologias daquilo que aprendeu, o que nos leva à outra questão: “Ao nascermos numa cultura, ela é naturalmente nossa, como obrigação, direito e lealdade ou, como seres livres e racionais, temos a liberdade de escolher aquela que melhor adequa-se às nossas ideologias e valores pessoais? (Isso, em Ética, sobre a consciência moral).

A prosperidade era mais importante do que o casamento na sua essência, passava a ter uma nova valorização. Sexualidade animal, sem intimidade e amor. Mero acto de reprodução. Tornaria a cultura os homens ambiciosos e egoístas, sem emoções naturais ou capacidade de reflexão própria e individual? Deveria a  cultura acima dos homens?

Poderia-se considerar uma limitação no pensar? Quais seriam então os parâmetros para se determinar que uma cultura e valores estão aquém daquilo que deveriam ser? E que suas ideologias são um factor limitante ou positivo para a evolução das sociedades? Seria a tradição um mal? Um peso? Uma prisão?

A globalização actual permite que as culturas e povos estejam em constante contacto e interacção, diferentes etnias e mosaicos culturais que dançam entre si formando novas melodias e composições. A troca de cultura, a recepção de uma nova além da que já se tem, radicalmente preparando-se para um novo mundo cria conjecturas inimagináveis. Os olhos, a visão abre-se para a extensão do mundo que vai além do que já se conhecia. E quando essa visão contraria o mundo a que sempre se esteve acostumado? Existirá uma influência do ambiente, adaptação ao meio ou rejeição total por meio dos conflitos que o indivíduo viverá? Vergonha das suas origens? A personagem da obra passa por todas essas estações na costante mudança de espaços culturais, vemos na página 68 uma parte de seu pensamento:

/De um lado, era necessário vencer, fosse em que circunstâncias fosse, esta crise de identidade, esta dualidade que atolava. Do outro lado lado, devia apartar da minha mente a impressão estranha que passei a ter de nós, dado o modo em que vivíamos./ (Não apenas choque cultural, mas também choque cultural reverso)

A diferença de culturas causa um choque cultural, conflitos mentais e psicológicos e até mesmo emocionais, crises de identidade e pertença, reflexões. Pepela, por exemplo, apesar de amar a sua história, haviam aspectos dos quais discordava, e apesar de estar a aprender sobre uma nova cultura, ainda assim haviam aspectos dos quais discordava também. A nova cultura permitia-lhe enxergar os aspectos positivos e negativos da sua, e vice-versa. Dificuldade em conseguir conciliar as duas realidades e respeitar as suas origens, medo de perder-se, porém, o processo que se vive, se bem passado alcança-se o EU superior e pleno.

Já naquela época Angola era um mosaico cultural emaranhado, impossível não existir contacto entre as culturas e etnias. Cada cultura foi bebendo da outra, envenenando-se e por vezes entrando em conflitos, num território, só uma cultura pode predominar, ela age de uma maneira ciumenta e possessiva sobre aqueles que a têm. Preconceitos etnico-culturais entre os elementos do mosaico cultural. Guerra de/entre etnias, algo que se consta até aos presentes dias.

Seria sensato adoptar ideologias culturais de uma cultura que despreza a nossa? Seria uma espécie de traição ao que é nosso? Mas, e se, apesar disso, essas ideologias forem positivas para a ascenção da sociedade? Seriam sacrifícios necessários?

É possível quebrar os paradigmas culturais? As vezes eles ficam confinados ao passado do povo que, com certeza, têm grande importância na história e constituição do mesmo, porém, estar preso a isso pode ser um factor limitante.

Existirá uma esperança de mudança? Que os povos e culturas aliem-se e desenvolvam-se juntos, não em guerra uns contra os outros, mas juntos contra os conflitos sociais que se sobrepõem as sociedades ao longo dos tempos.

A interacção intercultural é um dos factores que contribui para o desenvolvimento extensivo das sociedades na partilha de ideologias e qualidades inerentes a uma cultura, contudo, não se pode negar que esse intercâmbio, causa, em muitas instâncias, conflitos pesados e difíceis de serem solucionados. O facto é: o choque cultural é até hoje um factor difícil de lidar e conciliar. Apesar de bebermos um pouco de cada cultura só podemos ser fiéis a uma? Qual seria?

Ester Diahoha nasceu em 31 de Maio de 2003 em Luanda. Terminou o Ensino Médio em Ciências Físicas e Biológicas no Complexo Escolar Teresiano de Viana em 2020. Actualmente, é estudante do 3° ano do Ensino do Português e Línguas Nacionais na Universidade Jean Piaget de Angola.

Participou, em 2022, da formação de Escrita Criativa e Comentário Literário organizada pela VPA e dirigida pelo escritor, professor e crítico literário Hélder Simbad. Trabalha com a escrita, análise literária, revisão e correcção de livros. É membro do Círculo de Estudos Literários e Linguísticos Litteragris.

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